Friday, March 31, 2006

Corrosão do Tempo

Amei-te com paixão de menina; e depois com a calma de quem sabia todos os segredos.
Era de partilhas o primeiro sonho e por isso emergiam flores do nosso chão conjunto.
Foi contigo que desenhei as paredes e o forro de um abrigo à sombra, com varandas suspensas na solidez de duas ou três traves.
E assim ficámos, vendo passar as manhãs sobre as noites alongadas; talvez com frio ou com metáforas a gastarem-se nos gestos. Ou nos abraços.
Pousávamos carinhos sobre o corpo, cada vez mais à beira do silêncio ou do gelo que sobrava de cada noite.
Não sei se foi o vento ou a maldade que desenhou um barco sobre as águas a caminho da margem mais atenta.

No cais havia um palco e muitas mãos exibindo o fulgor de outros segredos plantados nos degraus. E tu seguiste.
Subitamente quebrou-se o meu perfil e as águas agitaram-se.

Wednesday, March 29, 2006

V Edição do concurso O Escritor Famoso - Actos de Cinema




Ele voltou. O Escritor Famoso.


Foi ela que o trouxe ao Divas e Contrabaixos.


Imagens sonoras, sensações-pensamentos ... actos de cinema.

Vale a pena ir ver... aqui.


Sunday, March 26, 2006

Histórias 1.

Ela dizia que não suportava ser a segunda. Ou a terceira, que não sabia exactamente de quem era o cheiro que ele trazia colado à pele quando chegava. Mas abria-lhe a porta e a primeira parte do serão era feita de agressividade. Pensava sempre que era a última noite, que a seguir se despedia do corpo dele para sempre e que partia, de madrugada, para outra terra ou para outro céu. Era mais fácil procurar outro céu e entrar nele de braços escancarados. Há sempre carinho a entrar pelos braços abertos de uma mulher. Ou neles. E depois o céu. Mas quando beijava outro corpo era nele que pensava e não havia céu que justificasse o conforto emprestado aos braços; parecia-lhe que só aquele toque oxigenava as suas células e que nada mais existia para além da violência dos corpos a amainar depois da satisfação. Era quando faziam as pazes ou ele falava de paz e de trazer as roupas e ficar para sempre naquele quarto. Invariavelmente partia antes do dia começar e ela acordava sozinha a repetir que tinha sido a última vez. Depois o dia começava. E os braços que se apertavam um no outro, fechando-se todo o espaço pelo lado de fora, eram os dela.

Thursday, March 23, 2006

Desafio ao Outono

Reedição do Poema ao Outono (editado em Novembro, mês profícuo em produção poética...), escrito para o concurso do Escritor Famoso... lembram-se?

Só para lembrar que também sei usar o registo menos nostálgico...


Costumávamos ficar deitados à beira do Outono
Como se quiséssemos guardar o fermento das palavras
Usávamos a voz na margem das penumbras
Não fossem os deuses acordar zangados
E escrevíamos páginas de silêncios
Sobre folhas engelhadas;
Cruzávamos as mãos sob o declinar do sol
Os corpos fundiam-se com a terra e cheirava a barro fresco
Se chovia molhávamos os lábios depois dos beijos
As folhas inchavam apercebendo-se do calor dos olhos
E no céu, por entre os intervalos da folhagem velha
Os deuses liam-nos as mãos, pausadamente
Determinando as palavras que me dirias
Por entre as linhas descontínuas, quebradas
Éramos presas fáceis depois do fim do verão
Sem tardes de abraço quente à sombra das falésias
Nem passeios de aves
Em silêncio ofereci-te a minha mão
E sobre ela despontaram as sílabas da palavra amor.

Wednesday, March 22, 2006

culpas sem valor

E não me venhas falar de culpas, que já me desgastei em penitências bárbaras sem olhos que me vissem ou mãos que me agarrassem no caminho.

Fala-me antes de prazer que a vida é esse vestido em tons de cinza deslavada se não se encontra a arte de inverter o curso imundo das coisas consentidas.

E não me digas que devia fixar-me em coisas simples, que outra coisa não desejo há décadas, incapaz de baixar os olhos para a leveza das marcas na areia mesmo sabendo que é esse o trilho.

Diz-me antes que também posso encontrar satisfação noutros lugares mesmo que a aridez dos caminhos me retardem a vista das coisas complicadas. Hei-de chegar-lhes.

Religião e culpa

Nas viagens marítimas, a partir de 1568 estipulou-se, para mareantes e passageiros, a obrigatoriedade da confissão e comunhão prévias, de modo a que, quando embarcassem, se encontrassem em estado de graça. Esta exigência tinha como fundamento a crença de que os pecados eram a causa mais frequente da perdição das naus.
Do cumprimento dessa obrigatoriedade deviam os párocos das freguesias passar certidão, que seria apresentada às autoridades no momento do embarque.
Acontecia, em algumas viagens, alguém ter um sonho premonitório. Dizia tratar-se de um aviso de Deus e procurava-se o sacramento da penitência como salvação.
Realizavam-se, ao longo da viagem, novenas e trezenas em devoção a Santo António, S. Francisco de Xavier, Santa Helena, S. Joaquim, Santa Ana, Senhora das Brotas, Anjo da Guarda ou outro. Os ofícios religiosos eram realizados com todo o rigor do ritual católico, incluindo sermão, vigílias, procissão com flagelantes, penitências e confissões.
Em momentos de desespero, perante o naufrágio, todos se colocavam sob a protecção da virgem e prometiam nunca mais voltar a pecar. E quando nada mais restava que a perspectiva do fim, podia morrer-se de braços abertos para o retábulo de Maria, fixado no mastro grande, porque morrer é o destino do Homem.

Monday, March 20, 2006

Lendo o passado

Em 1482/84 os navios de Diogo Cão aportam em M´Pinda, região do Soyo, pertencente ao Congo. É o primeiro contacto entre portugueses e congoleses.
O efeito psicológico da aparição dos brancos nestas paragens tem de ser explicado à luz do conceito de “mar” . Sabe-se que no seu passado os bantos adoravam um tal “calunga”, que quer dizer ‘mar’ ou ‘grande senhor’.
Os portugueses saídos do mar (das grandes águas), falando uma língua incompreensível, possuidores de navios nunca vistos, são inscritos num registo não humano, como espíritos dos antepassados, que depois de mortos se transformaram na cor branca.
A origem talássica dos portugueses e do cristianismo a eles associado provoca uma estranha mas compreensível submissão na mentalidade dos congoleses. É que na sua cosmogonia a estada dos defuntos situa-se nas águas e os espíritos dos antepassados encarnam no outro mundo em corpos brancos ou vermelhos.
Cristianizados, a confusão que se estabelece é brutal. É que a própria noção cristã de pecado é completamente estranha à religião tradicional dos bantos, assim como a de Diabo. Os bantos não concebem Deus como o fim último da sua existência. Entre eles a escatologia concretiza-se em existir com os antepassados, e não ter de se encontrar com um Deus e muito menos no Céu ou no Paraíso. Logo, o castigo divino não existe. Como Deus não castiga não o temem e como o mal é apenas causado por seres secundários, a culpa polarizou-se no desgosto e na vingança destes.

Sunday, March 19, 2006

Para onde?

Escher

Pousei as mãos sobre a mesa e soltei as imagens inventadas.
Disseram que abrindo as portas chegaria ao meu destino, ou descobri-lo-ia. Mas devagar.
Disseram que as mãos têm de sair de dentro das gavetas. E eu trouxe-as, sim, mas o pó da espera ocultava-lhes a forma e mesmo desdobradas eram ainda espessas. Tudo obscuro e indiferenciado.
Todos os começos são assim.
Não sei se me apetece abrir as portas. Do que me recordo, sempre, é de querer passar por espaços demasiado pequenos para a dimensão do meu corpo físico. Por vezes, porém, passei as paredes saltando-as. Nessas alturas creio que as asas funcionaram.
Recordo-me também de escadas, para além das paredes.
O mais certo é ficar fechada por detrás de um muro que deixa passar os sons de fora para dentro, aninhando-me na dissimulação.
Ou tentarei as escadas.

Saturday, March 18, 2006

experiência

Não consigo entrar no meu blog. Está-me proibido o acesso.
Isto é uma experiência.

Wednesday, March 15, 2006

Peso a mais ou balanças mal aferidas

Não me venhas falar de estruturação, que a vida é muito mais do que um esquema, muito mais do que as linhas de um gráfico, ainda que flutuante.
Não me venhas dizer que a harmonia passa pelos modelos explicativos, que eu já confrontei os anos que passaram com os anos que ainda faltam e não vejo registo de balanços, embora possa dizer-te que houve ganhos e houve perdas.
Não me venhas sugerir o cheiro do mar em dia de ondas batidas, ou a respeitabilidade do universo, que já relativizei a minha permanência até ao infinito e não sei de outra pequenez mais naufragada.
Não me venhas mostrar as palavras editadas, que a minha ambição reside no conteúdo de mim mesma e a balança não tem fidelidade que me satisfaça.
Não me venhas afirmar possibilidades, que as alvoradas são ainda fáceis antes da dificuldade de sucumbir ao não querer mais do que o desejo feito fragilidade.
Não me venhas escutar ao fim do dia, que esse é o momento em que não sei dizer de mim mais do que a gradação do silêncio dentro de uma catedral sem sinos.

Sunday, March 12, 2006

Asas paradas são penas

Fotografia de Tozé

Não me apetecia vir falar de penas. Embora as tenhas desfocado na imagem que o teu olhar representou. Aliás não sabes bem por que razão as desfocaste, mas a verdade é que quando viste a imagem, depois de apanhada a realidade dentro de linhas fechadas, presa no tempo, olhaste e viste que as penas não tinham nitidez.
Coisa estranha, pensaste!
Tinhas tentado captar as asas pensando que a simbologia, sendo especial, te deixaria uma fabulosa recordação. A recordação do momento em que o velho se rendeu ao voo e ficou parado. Porque foi o velho que o teu olhar visualizou, foi nele que pensaste, na sua pose rendida, de olhos no chão, a lembrar tempos em que tinha asas e voava.
Então eu explico-te: dentro das linhas prisioneiras da imagem não cabem asas.
Asas paradas são coisas trágicas.
Ficaram as penas.

Hoje troquei as mãos pelos olhos



Saturday, March 11, 2006

Mãos abertas dentro de gavetas fechadas

E no percurso das mãos para a mente vão sobrando ideias.

Não sei se é exactamente assim, se são as mãos que comandam. Depende dos dias, da pressa, da situação, do outro… ou de mim.
Há dias em que as mãos me levam; noutros eu seguro-as dentro dos bolsos, presas à textura do forro. Morro por dentro das palavras que estão ali e que eu não sou capaz de soltar, de verbalizar.
Há outros dias em que deixo as mãos abertas dentro de gavetas fechadas.
Mas mesmo abertas, escorregadias, longas nos seus gestos nem sempre soltos, nem sempre desimpedidos, elas não deixam sair todas as palavras que a mente guarda em cantos inacessíveis.
Que filtro as sustém? Que cortina se interpõe à vontade de soprar para fora a sujidade?

Que ideias sobraram?
Era disso que queria falar…

Monday, March 06, 2006

As mãos

Escher
Também gosto de estender as mãos e olhar para elas como se olhasse para obras acabadas. Obras que falam. Obras que escondem e se escondem. Dedos abertos, esticados, enrolados, apontados, enleados.
Mãos sujas de tinta, mãos apinhadas de ideias. Mãos vazias exibindo facetas, muitas, múltiplas.
Não contemplo por contemplar; não dirijo gratidões aos deuses. Todos eles foram servidos de obras perfeitas. Vénus teria mãos de quem sabia sentir os corpos celestes; Apolo tinha mãos de tocador de lira; Dionísio tinha cachos de uvas nas mãos, antes de os converter no saboroso vinho que ostentava na taça, entre os dedos; Zeus apenas apontava e das suas mãos saíam raios, disparados a partir da sua vontade, que era a vontade divina. Hefesto forjou

mãos e mãos a ferro e fogo.
Que vontade divina obriga as mãos a serem mais velozes que o cérebro?
Gosto de colocar as mãos sobre as letras, sendo nas teclas que é feita a conversão. Gosto ainda mais de derramar a tinta sobre o papel e desenhar palavras em linha, sem que a mente mas diga.
Não são obras que saem delas. Elas são as obras. As mãos.

Friday, March 03, 2006

Era uma vez um ninho sobre ramos de uma árvore despida.




“O sonho não pode ser também aplicado à solução das questões fundamentais da vida?”

disse André Breton, em 1924, quando propunha a restauração dos sentimentos humanos e do instinto como ponto de partida para uma nova linguagem artística.

Para isso era preciso que o homem tivesse uma visão totalmente introspectiva de si mesmo e encontrasse esse ponto do espírito no qual a realidade interna e externa se misturam sem contradições.

A livre associação e a análise dos sonhos, ambos métodos da psicanálise freudiana, transformaram-se nos procedimentos básicos do surrealismo. Por meio do automatismo, ou seja, qualquer forma de expressão em que a mente não exercesse nenhum tipo de controle, os surrealistas tentavam plasmar, seja por meio de formas abstractas ou figurativas simbólicas, as imagens da realidade mais profunda do ser humano: o subconsciente.

Thursday, March 02, 2006

Os irmãos dos irmãos

Carina – Vou passar o fim-de-semana com a minha irmã mais nova, em casa do meu pai.
Professora – E dás-te bem com ela?
Carina – Sim, a minha mãe é que não se dá, mas eu gosto de ir lá!
Catarina – Ai eu também costumo ir, mas eu tenho um irmão do lado da minha mãe e uma irmã do lado do pai. Já viu, professora, que grande família.
Rita – Eu então é assim: somos duas irmãs dos mesmos pais, mas cada uma vive com uma avó; a minha mãe não mora cá e a mulher do meu pai teve bebé a semana passada. Agora somos três raparigas e dois Fábios.
Diana – Dois?
Rita – Sim, um Fábio que é filho da minha mãe e outro Fábio que é filho da Beta.
Professora – E quem é a Beta?
Rita – É a namorada do meu pai, a que teve a menina.



A Rita é a recordista das negativas na turma – teve 12. Já conseguiu subir a duas. Está proposta para aulas de apoio, ela e os outros 13 alunos que têm negativas em número aproximado. Mas não vai. Já chega de secas, diz ela!
Provavelmente passa para o 9º ano porque o 3º ciclo é constituído por 3 anos e reter um aluno exige planos de recuperação, justificações do insucesso, declarações de autorização da parte dos pais e outras coisas relativamente burocráticas. Além disso o Encarregado de Educação devia tomar conhecimento de que a Rita, que tem 15 anos e está fora da escolaridade obrigatória, já excedeu o número limite de faltas que pode dar. Mas como a avó nunca veio à escola e nunca levantou a correspondência registada, não se pode dar sequência ao processo.

Wednesday, March 01, 2006

Que fazer?

"A formação dos alunos para a cidadania (...) A tomada de consciência da personalidade própria e dos outros, a participação na vida da comunidade, o desenvolvimento de um espírito crítico, a construção de uma identidade pessoal, social e cultural instituem-se como eixos fundamentais nesta competência. Estes factores implicam a promoção de valores e atitudes conducentes ao exercício de uma cidadania responsável num mundo em permanente mutação, onde o indivíduo deve afirmar a sua personalidade sem deixar de aceitar e respeitar a dos outros, conhecer e reivindicar os seus direitos, sem deixar de conhecer e cumprir os seus deveres. Trata-se, em suma, de levar o indivíduo-aluno a saber viver bem consigo e com os outros".
(do programa de Português)


"Ora, os jovens, na fase de desenvolvimento em que se encontram durante a frequência deste nível de ensino, necessitam de referentes seguros que lhes permitam interpretar as realidades sociais que com eles interagem; que proporcionem fios de inteligibilidade entre as grandes questões nacionais e os problemas decorrentes de uma globalização cada vez mais envolvente; que se constituam como apoio para as escolhas que inevitavelmente terão de realizar. Nesta perspectiva, a História, cujo objectivo último é, afinal, a compreensão da vida do homem em sociedade, configura-se como uma disciplina de eleição"
(do programa de História)



Ao fim de alguns anos de trabalho gratificante...
... estou quase a render-me!

Alguém sabe dizer-me porquê?