Monday, March 20, 2006

Lendo o passado

Em 1482/84 os navios de Diogo Cão aportam em M´Pinda, região do Soyo, pertencente ao Congo. É o primeiro contacto entre portugueses e congoleses.
O efeito psicológico da aparição dos brancos nestas paragens tem de ser explicado à luz do conceito de “mar” . Sabe-se que no seu passado os bantos adoravam um tal “calunga”, que quer dizer ‘mar’ ou ‘grande senhor’.
Os portugueses saídos do mar (das grandes águas), falando uma língua incompreensível, possuidores de navios nunca vistos, são inscritos num registo não humano, como espíritos dos antepassados, que depois de mortos se transformaram na cor branca.
A origem talássica dos portugueses e do cristianismo a eles associado provoca uma estranha mas compreensível submissão na mentalidade dos congoleses. É que na sua cosmogonia a estada dos defuntos situa-se nas águas e os espíritos dos antepassados encarnam no outro mundo em corpos brancos ou vermelhos.
Cristianizados, a confusão que se estabelece é brutal. É que a própria noção cristã de pecado é completamente estranha à religião tradicional dos bantos, assim como a de Diabo. Os bantos não concebem Deus como o fim último da sua existência. Entre eles a escatologia concretiza-se em existir com os antepassados, e não ter de se encontrar com um Deus e muito menos no Céu ou no Paraíso. Logo, o castigo divino não existe. Como Deus não castiga não o temem e como o mal é apenas causado por seres secundários, a culpa polarizou-se no desgosto e na vingança destes.

8 comments:

mfc said...

Sinto-me um perfeito "Banto" nesta nossa sociedade a pouco e pouco cada vez mais eclesial... no que ao poder respeita!

Anonymous said...

Gostei muito e aprendi um pouco mais. Embora o cristianismo fizesse das suas, os tribais/nativos com quem cresci e aprendi nunca perderam as suas raízes, mantendo-se intocável as suas crenças e tradições.
Não sendo congolesa, nem grande senhora mas farta de tanta hipocrisia...subscrevo as palavras de mfc.

admin said...

Cada ser humano gostou sempre de impor aos outros a sua magistral forma de felicidade, deduzindo que 'o outro' estava a perder por não fruir das próprias benesses - neste caso a Salvação. Suponho que, a haver uma constante civilizacional, esta poderia ser uma delas.
Só nos nossos dias - estranhos dias estes, algumas cabeças desocupadas se puseram a identificar a benevolência como uma forma de poder. Mas já não é necessário. Hoje, aqui, os métodos de mudar trajectórias já são outros, mais subtis, mais limpos, mais humanos.
Idade Média diferente da idade Média que no dia de hoje, em Cabul, condena à morte um ex-muçulmano que se converteu - seja lá isso o que for - ao cristianismo, cumprindo assim a constituição do país libertado aos Talibans.

antónio paiva said...

.....um bom momento de aprendizagem e tomada de consciência.....

Beijinho

mixtu said...

lindo "o castigo divino não existe" ao contrario da biblia...
jinhos

Elipse said...

há uma coisita que ficou encravada em todos nós desde o berço - a culpa. Seguida, claro está, da punição.
Nunca conseguiremos largar esta forma que nos enforma, mesmo que, por breves instantes, nos libertemos um pouco... Pena!!!
Não era assim que os valores deveriam ser-nos passados...

Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

acabo de imprimir este texto. depois digo-te porquê ;)
bj grande

ivamarle said...

...é verdade, a culpa acompanha-nos e tolhe-nos.