Thursday, September 29, 2005

As grades

Sentado ainda no lugar do condutor, ele sentiu a mão que se abeirou da janela. E entregou a sua, como se estivesse à espera há muito tempo. Olhou para fora, para ver de onde vinha o braço, mas a névoa só lhe permitia descortinar o verde da manga que cobria o pulso. Estranhou o contacto, não era comum tal intimidade com uma mão estranha, mas sentiu-se bem, apesar das grades que o separavam do exterior. Aliás, habituara-se ao gradeamento: bastava ter um simples desejo, nem precisando de o verbalizar, para que tudo aquilo em que tinha ousado pensar ficasse ao seu alcance.
Porém, era apenas à noite que aquela espécie de magia funcionava, quando o cansaço do dia fazia vergar o corpo no banco almofadado do automóvel, sem possibilidade de sair dali para desentorpecer as pernas. Ao longo do dia mantinha-se sentado, mãos no volante, dominando o espaço e o tempo à sua maneira, enquanto os ponteiros do relógio continuavam a eterna imposição do tempo exterior. Dali via todo o mundo, entrava na sala de trabalho pela porta grande, mãos no volante, ainda, e a secretária vinha trazer-lhe os papéis onde a tinta derramava a sua marca institucional; mostrava-se ao conjunto de funcionários que teclavam incessantemente, olhos postos na luminosidade dos monitores; ligava um comando e a voz da esposa fazia-se ouvir, melódica, deixando-lhe o sorriso rasgado pelo resto do dia. Amiúde interrompia o trabalho, devolvia os papéis à secretária que os recebia, atenta, por entre as grades e carregava de novo no pedal, acelerando para mais um movimento automatizado.
Percorria o espaço como se estivesse numa pista de dança. Em tempos – recordava – sentindo-se ainda entre fumo, decibéis e olhos a piscarem, destacava-se entre os demais, pés colados ao caleidoscópio do piso, enquanto todo o corpo abanava saindo dele, a um tempo, a rotação e a translação da terra. Lembrava-se de como fechava os olhos e acolhia um continente inteiro nos braços abertos, enquanto as ancas ritmavam a dança. Pista cheia em noite de sexta-feira, abandonado o dever dos dias pela troca voluntária e desejada, cheiro a corpos já transpirados mas ainda com o aroma frutado do duche que antecedera os arranjos ao espelho. Era isto que comunicava à mão quente que viera procurar a sua, na espera de mais uma madrugada.
Contava também como se movia no espaço, sentado ainda no banco de couro, e como o espaço se movia com ele, mas sempre ali, no mesmo lugar. Falava nas viagens que já fizera e nas que queria ainda fazer. Ele, dentro de um carro em movimento, como um planeta no espaço das galáxias, sem se mover do seu eixo. Lugar de responsabilidade, convertido diariamente em lugar de transporte de uma figurinha de olhos doces que, à porta da escola, aguardava pacientemente a chegada certa do progenitor. A direcção era a piscina, no horário do fim da tarde. Era mais uma vez desse lugar, as mãos ainda no volante, que a via dar braçadas seguras, através do vidro e através das grades, sem poder tocar-lhe com os olhos, que vidravam lágrimas.
À noite a esposa estava presente. E trazia-lhe o sossego, à noite, só à noite. Sentava-se a seu lado e contava como tinha sido o dia e como tinham sido as conversas com os filhos que verbalizavam expectativas, receios, projectos e sonhos. Quando tinha conhecimento deles sorria feliz. Sorria pela doce presença de uma companhia que nunca falhava, pelo conforto do cobertor que lhe trazia nas noites mais invernosas, pela água fresca que lhe passava pelos lábios nas tardes de estio sem sombras que ia suportando com amargura acrescida. A esposa sorria sempre, depois fechava os olhos e atirava a cabeça para trás, colocando os braços à sua volta, braços longos, cordas de atracar navios cansados de cais. Faziam amor à noite, no espaço exíguo que se transformava em universo, ao som da melodia da sua voz satisfeita.
Era isto que dizia à mão que viera de noite, por entre as grades, para lhe fazer companhia. E desviava os olhos da mão, que tinha também olhos e sabia das suas lágrimas.
A mão acariciou a angústia e ergueu um dedo para as grades.
Sim, instalaram-se aos poucos, sem que ele tivesse tido tempo de as observar de perto, tal era a sua concentração nos ponteiros do relógio e na pressa com que se antecipava aos outros carros para chegar a tempo. E, invariavelmente chegava a tempo, enquanto as grades cresciam e engrossavam nas janelas do automóvel.
A mão não disse nada. Só lhe era permitido ter olhos. Contudo, ele ouviu um murmúrio, um som que era penumbra guardada na memória e olhou pelo espelho retrovisor. Era o pai, mas jovem, muito mais jovem, de olhar duro, colocado mesmo ali atrás, mas tão distante.
Ele não se lembra se foi a voz do pai, sibilando falas de velho, já sem força, mas foi quase como uma ordem, ou talvez não mais que uma sugestão dita, agora, a medo.
Lançou a mão direita e arrancou um pedaço da primeira grade, que levou à boca, mastigando o ferro com a solidez dos dentes. Depois mais um pedaço. Sangrou um pouco. Talvez devesse parar. No chão, viu espalharem-se palavras, devagarinho.
Amanhã – pensava – amanhã comeria a segunda.
A mão retirou-se. Não era para si a missão de limpar a boca ensanguentada e a digestão teria de ser lenta, para não magoar.

Wednesday, September 28, 2005

Rosto no Espelho


É um rosto no lado de lá, que me olha de cima, de lado, de frente, visão de todas as faces de uma coisa que se chama pessoa e que se olha às vezes como se fosse uma ilha, outras vezes apenas como um pedaço de realidade que se enquadra ou desenquadra, depende sempre do dia, da pressa do levantar ou do sentar à mesa para uma refeição mal mastigada.
É um rosto de olhos enquadrados, quase só olhos de olhar e o resto fica como que apagado pela direcção do foco que foca as coisas que não se vêem a olho nú.
É um rosto que fixa, que teima, que se fixa em teimosias feitas quimeras ou em pontos de fuga que permanecem nas telas inventadas e presas na imaginação a ponto firme. Rosto no espelho. Rosto visível. Ilha presa em marés nuas sem linhas de fuga.

Sunday, September 25, 2005

Paradoxos


Conheço a minha face mais detestável – a que adia e suprime prazeres, por ser incapaz de se mexer para sair do lugar onde, em certos dias, uma certa melancolia funciona como as ruas de Cesário Verde, ao anoitecer…

“Nas ruas, ao anoitecer
Há tal sonoridade, há tal melancolia
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer”.

Em dias desses amargo os sentidos mesmo que à minha volta apareçam algumas solicitações, algumas sugestões, as suficientes para poder deixar o cais e abrir as velas em direcção a objectivos concretos, com rumos certos.
Porém, há dias em que “todos os lugares são os mesmos lugares, todas as terras são a mesma terra”, diz Álvaro de Campos e com ele eu digo que há dias em que “escrevo palavras e palavras e palavras, a dizer que não tenho nada que dizer; palavras a teimar em dizer isso (…) (estando) a verdade toda, e a vida toda fora delas e de mim”. (ele dizia “versos” e eu digo “palavras”).

Nestes dias a poesia parece ajudar. Deve ser por isso que pego nos livros e os folheio. Ou dirijo o olho fotógrafo para pormenores, em busca de tudo o que me preencha este “desejo absurdo de sofrer”, embora quisesse encontrar tudo “alegremente exacto”...

"Ah, todo o cais é uma saudade de pedra”, diz ainda Álvaro de Campos; e diz também, alinhando os versos:

“Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que não recebo.”

Nestes dias de enfado há uma inércia negra que chega a ser violenta de tanta passividade e de tanta espera.
Tudo, e em tudo, um grande paradoxo!
Folha seca e abandonada às primeiras brisas do Outono.

Monday, September 19, 2005

O avô e o mar


Era uma vez uma onda…
Lembro-me das histórias do avô quando saíamos de mãos dadas logo pela manhã bem cedinho, o sol a nascer muito grande e a prometer um dia de calor daqueles em que eu ficava toda a tarde na água até ter os dedos das mãos engelhados e o corpo a tremer de frio. Nessas tardes o avô ficava à beira-mar, às vezes vinha ter comigo e estendia os braços para que eu me deitasse sobre eles e dizia: “mexe os braços” ou não dizia nada mas era como se dissesse.
Lembro-me de ter aprendido a nadar nos braços do meu avô.
Outras vezes sentava-se e vigiava as minhas brincadeiras. Ou trazia-me os baldes de água do mar para fazer um lago cavado na praia. Ou ajudava-me na construção dos castelos de ameias definidas, com túneis engenhosamente construídos sobre a areia molhada e fossos para aprisionar os inimigos. Eles vinham a cavalo para conquistar o castelo, já os avistava. Tornei-me espadachim, fiz cair cavaleiros, salvei princesas moiras e belas adormecidas, matei monstros e desfiz encantos de bruxas más.
Lembro-me de o ouvir dizer que o mar era perigoso. Ele dizia “traiçoeiro” e eu não sabia dos perigos porque a mão do avô estava sempre junto à minha quando as ondas se empinavam e enrolavam a areia que se metia por dentro dos calções.

Lembro-me, agora, de ter ouvido contar que ainda tentaram reanimar o seu corpo, depois de o retirarem do mar, junto às rochas. Disseram que escorregou quando puxou a cana de pesca e que o ouviram gritar o meu nome quando caiu às águas.

As ameias



Estava ali fechada e a vista perdia-se na contemplação das coisas possíveis, dias de neblina sobre as pálpebras e muralhas de ameias sobre a vontade.
Estava ali fechada nos dias invernosos, paisagem escura, sonhos encarcerados no círculo das pedras.
Estava ali com vontade de ter asas ou pernas de gigante que ultrapassassem a inquietação contida na clausura.
Era moira por encantar, rosto sem espelhos para cá dos céus, estátua de pedra por analogia simples, semente caída em rocha.
Estava ali fechada, ou eu ou a minha imaginação.

Friday, September 09, 2005

Imperfeições


Fica sempre tudo inacabado ou está sempre tudo em curso como um rio ao qual podemos sempre alterar o caudal sabendo que se o fizermos há coisas que mudam a montante podendo as alterações ser irreversíveis.
Não sei por que me apetece escrever sobre coisas imperfeitas talvez seja a ameaça de Outono que começa a ofuscar a luz de muitos dias intensos ou a luz intensa de muitos dias não gosto deste adjectivar repetido mas sei que quero escrever sobre esta mudança que repetidamente me aflige e me perturba as emoções e a racionalidade .
Ou talvez esteja sob o efeito de tarefas imperfeitas impossíveis de aperfeiçoar por contingências várias mas sempre no curso das coisas que se podiam alterar sendo difícil o empreendimento por ser intenso.
Tudo a dificultar a estabilidade e ainda mais a impressão de poder ter sido de outra maneira se este calor camuflado não apoquentasse o estar bem ou pelo menos o estar razoavelmente e as coisas que passaram tivessem apenas ficado a aguardar o curso do tempo.
Todas as resoluções decorrem de pensamentos imperfeitos e de percursos continuados.
E eu aqui.

Wednesday, September 07, 2005

A criação









Sem máscara somos de novo obrigados a criar.
É sempre preciso mudar a cor dos olhos.

O que fica é apenas o olhar.

Monday, September 05, 2005

Um corpo visto de cima

Vejo-me de fora, dentro da paisagem.
Como se estivesse pousada numa nuvem acima do percurso dos pássaros.
Deitei-me na areia à beira do rebentar das ondas debaixo do mesmo céu que outros vêem e fiquei estendida, de olhos fechados a evitar a luz do sol.

De olhos fechados é como se nada existisse. As crianças fecham os olhos e ficam escondidas do mundo.

Vejo-me de cima, um corpo estendido na areia de uma praia, à beira de um oceano que começa ali e dá a volta ao mundo; no outro lado há também gente que se estende e fecha os olhos a evitar a luz do mesmo sol.
A dimensão do meu corpo vai perdendo importância; vista de cima sou uma entre os outros.

Retirei a máscara há muito tempo mas não dei conta da extinção dos medos.
Nunca damos pelo passar do tempo.

Sem máscara

Mas sem máscara ficamos cristalinos.
Cristal transparente deixa ver as vísceras. As vísceras são feias na transparência da pele sensível. São frágeis também. Mostram os processos no seu desenrolar íntimo.
Sem máscaras ficamos quebráveis. Vidro fininho que estala sob o calor do sol ou sob o granizo que se escapa de uma nuvem. Temperaturas inversas, súbitas, são fontes de dano irreparável. O vidro quebra e os restos aguçados ficam expostos à passagem das mãos.

Sem máscara ficamos apenas com as mãos para tapar os olhos, nos dias em que eles se recusam a ver.
Ou nos dias em que não queremos ser vistos.