Sentado ainda no lugar do condutor, ele sentiu a mão que se abeirou da janela. E entregou a sua, como se estivesse à espera há muito tempo. Olhou para fora, para ver de onde vinha o braço, mas a névoa só lhe permitia descortinar o verde da manga que cobria o pulso. Estranhou o contacto, não era comum tal intimidade com uma mão estranha, mas sentiu-se bem, apesar das grades que o separavam do exterior. Aliás, habituara-se ao gradeamento: bastava ter um simples desejo, nem precisando de o verbalizar, para que tudo aquilo em que tinha ousado pensar ficasse ao seu alcance.
Porém, era apenas à noite que aquela espécie de magia funcionava, quando o cansaço do dia fazia vergar o corpo no banco almofadado do automóvel, sem possibilidade de sair dali para desentorpecer as pernas. Ao longo do dia mantinha-se sentado, mãos no volante, dominando o espaço e o tempo à sua maneira, enquanto os ponteiros do relógio continuavam a eterna imposição do tempo exterior. Dali via todo o mundo, entrava na sala de trabalho pela porta grande, mãos no volante, ainda, e a secretária vinha trazer-lhe os papéis onde a tinta derramava a sua marca institucional; mostrava-se ao conjunto de funcionários que teclavam incessantemente, olhos postos na luminosidade dos monitores; ligava um comando e a voz da esposa fazia-se ouvir, melódica, deixando-lhe o sorriso rasgado pelo resto do dia. Amiúde interrompia o trabalho, devolvia os papéis à secretária que os recebia, atenta, por entre as grades e carregava de novo no pedal, acelerando para mais um movimento automatizado.
Percorria o espaço como se estivesse numa pista de dança. Em tempos – recordava – sentindo-se ainda entre fumo, decibéis e olhos a piscarem, destacava-se entre os demais, pés colados ao caleidoscópio do piso, enquanto todo o corpo abanava saindo dele, a um tempo, a rotação e a translação da terra. Lembrava-se de como fechava os olhos e acolhia um continente inteiro nos braços abertos, enquanto as ancas ritmavam a dança. Pista cheia em noite de sexta-feira, abandonado o dever dos dias pela troca voluntária e desejada, cheiro a corpos já transpirados mas ainda com o aroma frutado do duche que antecedera os arranjos ao espelho. Era isto que comunicava à mão quente que viera procurar a sua, na espera de mais uma madrugada.
Contava também como se movia no espaço, sentado ainda no banco de couro, e como o espaço se movia com ele, mas sempre ali, no mesmo lugar. Falava nas viagens que já fizera e nas que queria ainda fazer. Ele, dentro de um carro em movimento, como um planeta no espaço das galáxias, sem se mover do seu eixo. Lugar de responsabilidade, convertido diariamente em lugar de transporte de uma figurinha de olhos doces que, à porta da escola, aguardava pacientemente a chegada certa do progenitor. A direcção era a piscina, no horário do fim da tarde. Era mais uma vez desse lugar, as mãos ainda no volante, que a via dar braçadas seguras, através do vidro e através das grades, sem poder tocar-lhe com os olhos, que vidravam lágrimas.
À noite a esposa estava presente. E trazia-lhe o sossego, à noite, só à noite. Sentava-se a seu lado e contava como tinha sido o dia e como tinham sido as conversas com os filhos que verbalizavam expectativas, receios, projectos e sonhos. Quando tinha conhecimento deles sorria feliz. Sorria pela doce presença de uma companhia que nunca falhava, pelo conforto do cobertor que lhe trazia nas noites mais invernosas, pela água fresca que lhe passava pelos lábios nas tardes de estio sem sombras que ia suportando com amargura acrescida. A esposa sorria sempre, depois fechava os olhos e atirava a cabeça para trás, colocando os braços à sua volta, braços longos, cordas de atracar navios cansados de cais. Faziam amor à noite, no espaço exíguo que se transformava em universo, ao som da melodia da sua voz satisfeita.
Era isto que dizia à mão que viera de noite, por entre as grades, para lhe fazer companhia. E desviava os olhos da mão, que tinha também olhos e sabia das suas lágrimas.
A mão acariciou a angústia e ergueu um dedo para as grades.
Sim, instalaram-se aos poucos, sem que ele tivesse tido tempo de as observar de perto, tal era a sua concentração nos ponteiros do relógio e na pressa com que se antecipava aos outros carros para chegar a tempo. E, invariavelmente chegava a tempo, enquanto as grades cresciam e engrossavam nas janelas do automóvel.
A mão não disse nada. Só lhe era permitido ter olhos. Contudo, ele ouviu um murmúrio, um som que era penumbra guardada na memória e olhou pelo espelho retrovisor. Era o pai, mas jovem, muito mais jovem, de olhar duro, colocado mesmo ali atrás, mas tão distante.
Ele não se lembra se foi a voz do pai, sibilando falas de velho, já sem força, mas foi quase como uma ordem, ou talvez não mais que uma sugestão dita, agora, a medo.
Lançou a mão direita e arrancou um pedaço da primeira grade, que levou à boca, mastigando o ferro com a solidez dos dentes. Depois mais um pedaço. Sangrou um pouco. Talvez devesse parar. No chão, viu espalharem-se palavras, devagarinho.
Amanhã – pensava – amanhã comeria a segunda.
A mão retirou-se. Não era para si a missão de limpar a boca ensanguentada e a digestão teria de ser lenta, para não magoar.
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5 months ago
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