
Está-se bem lá em baixo. Depois do calor da tarde o sol esconde-se por detrás da serra mas o mar ainda aconchega em ondas pequeninas e mansas. O corpo estendido na areia descansa da azáfama dos dias e a mente repousa, calma e enxuta.
"(...) não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer; quer dizer: o que é possível segundo a verosimilhança e a necessidade" (Aristóteles,Poética)
Feitas de verão as verdades cruas e as cidades arruinadas onde o negro das crateras e das casas que já não existem deixa à mostra os efeitos concretos da carne em chamas e da outra já calcinada que o tempo há-se gastar.
Feito de verão este efeito de sentimento áspero, verdade crua a despir as roupas coloridas gastando-se o sentir no tédio dos fios de seda inventados para dar cor à estação feita passagem, quase paragem.
Feitas de ódios eternos as verdades de ambas as partes do mundo sem que seja possível ou desejável tomar partido ou apenas dizer do bem e do mal.
Feito de calma peganhenta este pensamento veloz e repetido de um verão que nada traz de novo a não ser um efeito cíclico de insatisfação crua, estéril, negra sobre as cores que o sol deposita na superfície das águas de um mar ausente.
Feitas de gelo as imagens certeiras das ruínas onde nem tão pouco se podem achar culpas para ao menos lhes dar o efeito de razões imaculadas que libertem a alma das tragédias.
Feito de imagens este pesadelo mediatizado em reportagens cruas onde tudo é tão concreto como a descrença que sobrevive às telas construídas sobre o efeito das abstracções.
Feitas de horas arrastadas as guerras que travo comigo e os acordos de paz que vou permitindo para sentir apenas que a vida é um esforço laborioso.
Feito de gritos, depois da seiva dos risos, o vazio da descoberta de uma invenção entrançada em desejo e memória, que o tempo vai desfazendo por falta de consistência.
O verão devia permitir gritos concretos
e lançar no espaço os restos da invenção
seca. Culpa nossa que deixamos escorrer no riso
a seiva dos desejos renovados; e as palavras.
Culpa deste sol que desce em fios de seda
macios contra uma carne que toca a nossa carne por dentro
sobrando desse toque, apenas, os sinais das vísceras
queimadas e gastas de tanto as imaginarmos perfeitas.
Mas de que é que eu estava a falar?
Ah, sim, do excesso de calor e destas noites em que os corpos não desejam tocar-se para não se derreterem naquilo que deles sobra neste Verão com cheiro a queimado.
Quando Agosto chega e com ele este calor entediante e cansativo, não posso deixar de me lembrar de um relato soberbo de Mário de Carvalho em
Era bom que trocássemos algumas ideias sobre o assunto:
“E ei-los assim a altercar a travessia do Sado, alheados dos golfinhos, a caminho do seu primeiro dia de férias, como sempre, na Costa da Caparica, em Santo António, num rés-do-chão que arrendavam há anos a uma velha rabugenta, proprietária de muitos gatos, cujo odor continuava a impregnar a alcatifa, ainda que no Verão estivessem carinhosamente recolhidos noutro lugar qualquer, para dar lugar a veraneantes.
E, por ora, ponto final.
Joel Strosse tinha agarrado numa revista francesa, Ça Ira! E procurava concentrar-se num artigo intitulado “La gauche post-moderne, une déconstruction em marche?”, mas não conseguia passar do primeiro parágrafo. Era à tarde, cirandavam moscas em de permeio, umas melgas franco-atiradoras, prontas a atacar pela calada da noite, com aquele ruído característico da Fórmula 1, mais irritante que as alergias da matadura.
(…) pela janela gradeada via passar os veraneantes que regressavam da praia, dobrados ao peso dos guarda-sóis, basto enfadados , num carreiro sem fim. Pareciam zombies, de carnadura flácida, jeito mortiço e olhar vazio. Esta época obriga as pessoas a ir para a praia, a aturar a incomodidade de areias peganhentas, águas geladas, golpes de vento, bafos de multidão, peixes venenosos, miúdos turbulentos, sal na pele, transpiração, queimaduras, insolações, chatices, para confirmar que as práticas rituais só são válidas com algum desconforto. Há que prestar uma contrapartida pela conformação ao social. Está estabelecido pelas leis férreas do planeta.
(…) Cremilde, sentada num sofá estampado de flores, cujos castanhos e cinzentos não se sabia bem se eram obra do artista desenhador ou do uso continuado, ia folheando a Elle e perorando destarte:
─ Vem aqui que as varizes não têm cura. A operação pode aliviar um bocado mas cura é que não há. É um médico que diz. Traz fotografia e tudo.
Joel chegou-se à janela com o intuito de baixar a gelosia, tarefa árdua, científica e complicada, com aqueles fios todos num emaranhamento marujo.
(...)
Pega-se no volante no mês de Agosto e segue-se viagem.
Ou noutro mês qualquer, é sempre tempo de seguir viagem.
Disseste que foi separação? E daí? O mundo não pára para quem interrompe o percurso; o mundo nunca parou nem nos dias em que o céu decidiu desabar ou o chão se afundou deixando ver o (completamente) vazio.
Achas que os olhos denunciam? Que te dizem eles?
A mim, nada. Ali estão, fingindo transparência.
Ela foge? Achas que foge?
Não, não sei se tem filhos mas não parece que esteja presa. Apenas segue viagem.
Ou enlouqueceu?