Tuesday, August 29, 2006

"mulher fragmentada"

Ela fez o desenho e ofereceu-mo. Pediu um texto e ele saíu, verdadeiro, mas um pouco forçado nas rimas...

Fui tecida num tear de madeira crua e depois enformada num invólucro de numeração errada, um número abaixo das minhas dimensões. Cheguei ao mundo apertada.
Cresci com vontade de saber o que estava para além do fim da rua mas tive sempre medo de atravessar a floresta e descobri-la desencantada. Nasci incrédula.
Compus-me de timidez, fio a fio, linha tecida e retorcida numa mente insatisfeita mas contida; devo ter crescido encarcerada.
Aos poucos fui vestindo tecido acetinado, enfadada de tanto me encerrar na pequenez herdada. Pequenos complementos em fios de seda, escondidos, sentidos, vistos; e depois o gosto de me sentir recompensada.
Sorri quem sabe ser desejada. Investe quem tem um espelho grande e tece nele linhas cruzadas, desenleadas pela sublime sensação de ser amada.
É claro que fui feliz, da paz dos dias novos ao nascimento da prole desejada. Casa cheia de gritaria numa alegria abençoada.

Não sei se é problema deste espelho, ou se sou eu que me vejo numa imagem desfocada, mas os fios com que me visto agora são estas linhas quebradas, fios enleados, emaranhados, mal acabados …
Onde está a parte que me falta, as partes que me compõem: o corpo, as pernas, a cintura antes tão bem desenhada, as minhas mãos engenhosas e a saia fantasiada?
Não, não me digas que é uma tristeza inventada. É que a casa está vazia, tudo agora é um espelho descomposto, ou são os olhos que o quebraram e eu estou nele assim fragmentada.

Desalentada?
O coração está inteiro! Direi ao espelho que recomponha a minha parte apagada.

9 comments:

mfc said...

Está tudo em ti... olha de novo e melhor para ao espelho!

~pi said...

porque há-de o teu olhar vir de fora para dentro? talvez seja tempo doutra casa e doutro espelho, agora...
e, sim, está tudo ainda em semente, dentro de ti, falo do novo momento que vives, a cada tempo uma semente, estamos sempre em processo de ser, entre o que fomos e o que somos (e crescer dói,é natural...).abraço-pena não poder dar-to pessoalmente

ivamarle said...

vira o espelho ao contrário e cobre as memórias que lá restam, com o manto das recordações preciosas e no final, pinta-o de novo com a tinta que reflecte o teu Eu presente e admira-te, contempla-te.O verdadeiro espelho é aquele em que constróis cada dia que vives!
Belo texto, adorei; acho que estás mesmo a precisar de mudar de ares e aliviar os pensamentos, ao som das ondas numa qualquer praia remota...

wind said...

Não está no espelho está em ti.
Vai para a praia e quando fores à água fala com o mar, vais ver que ajuda:)
Conselho de uma doida.lololol
Texto muito bom:)
beijos e boas férias*

Anonymous said...

Um texto genial de "momentos" que passam!
Beijos

Anonymous said...

A minha teoria é que tudo é reciclável e que dos fragmentos TUDO é possível fazer...

rui-son said...

Só dentro de ti podes encontrar as partes que te faltam. O espelho só te mostrar o que está lá.

Claudia Sousa Dias said...

Subscrevo mfc!


CSD

Leonor C.. said...

Todos temos fragmentos de nós mesmos e alguns já inúteis para formar um todo. Procuramos,por vezes com grande esforço, combater o desânimo e juntar aqueles pedaços de nós que ainda se deixam colar, para olharmos ao espelho e podermos ver a nossa imagem ainda que com menos fulgor, mas já com as marcas deixadas pela vida.

Bjs