Friday, August 25, 2006

Memória vs. Rastilho ( ou vice-versa mas com outras palavras)


Lambi ainda esse ferro com que me feriste todos os sentidos
Enquanto me resguardava do abandono e o desejava;
Faz impressão não conseguir imaginar que tudo é outra coisa
Quando a noite arde sobre o corpo a deixar-se cair de encontro a uma parede branca.
Dizem-me as rugas que foi há muito tempo;
Os filhos cresceram sobre o sangue desse fim de tarde
E eu não creio ter sabido limar os vértices do drama
Enquanto vi grinaldas onde estavam cardos.

Ainda hoje não sei de espinhos mais profundos
Limados pela carne abandonada, ressentida
A sangrar, a sangrar em cada uma de todas as noites que vieram a seguir.
Durante os dias o corpo deslizava sobre grinaldas desfeitas
Refeitas em harmonia amedrontada da qual fizemos solidez.
O pior é perceber que é ainda de encontro à mesma parede branca
Que busco um fim de tarde, um fio de luz,
Um som que rompa a solidão, um fio de lucidez.

É tempo de ser o tempo exacto da partida
Os filhos crescem, o tempo vai deslizando inteiro sobre a carne mal tratada.
Os fins de tarde trazem apenas o pôr-do-sol e a noite entranha-se
No sentido dos versos arrancados às palavras.
O fumo de um cigarro que se escapa sob o brilho de uma estrela,
Um gato que se roça, um pensamento,
Um desejo de aurora calma disfarçada de euforia. Ou vice-versa.
Tudo a gastar-se na loucura sangrenta desta lágrima.

18 comments:

Thiago Forrest Gump said...

Texto bem intenso. Gosto dessa escrita que arrebata sutilmente.

Estou gostando de frequentar aqui!




Abraços

Anonymous said...

Os filhos cresceram sobre o sangue desse fim de tarde
E eu não creio ter sabido limar os vértices do drama
Enquanto vi grinaldas onde estavam cardos
(...)
e a história repete-se de geração para geração ou vice-versa.
Identifiquei-me nas tuas palavras, nostálgicas...mas numa escrita fabulosa!
Foi um belo pequeno almoço!
Beijos sinceros

ivamarle said...

a vida não se resume aos filhos.Tu já tinhas uma vida, antes de eles nascerem, não reduzas tantas experiências e tantos momentos, à mera equação de ser mãe; não que ela não seja importante, mas já os preparaste para enfrentar o mundo, é tempo de o enfrentares tu...

Bastet said...

A beleza que reside na tristeza talvez não a justifique mas é esta sublimação, a que nem todos aspiram, que me faz acreditar que quando a alegria chegar será na mesma proporção. Um beijo.

mfc said...

Olha para o mar...vê como as ondas se sucedem! Não choram a onda de ontem, mas espraiam-se com a do momento e anseiam a próxima.

Claudia Sousa Dias said...

Olá Elipse!

Só consigo comparar-te a Mozart pela inacreditável prosusão de material de altíssima qualidade com que nos brindas!

Já sabes o quanto eu gosto da tua escrita, não é preciso dizer-te.

Adoro, sobretudo, a narradora e tudo o que ela deiza adivinhar nas entrelinhas...

..está lá tudo e nada ao mesmo tempo.

Um beijo

CSD

José Manuel Dias said...

Do tempo se faz tempo...e criam novos tempos.
Bjs

ivamarle said...

tenho uma prenda para ti, no blog e o original...

Toze said...

Gosto bastante de te ler em voz alta, um dia gravo só pra ti :)

És linda pá :)
Beijo

Elipse said...

Thiago, és bemvindo;
fatyly, deve ser assim com todas as mulheres;
Iva, a tua imagem de olhos fechados sou eu a fechar os meus e a dizer assim: "eu sei"...
bastet, é uma tragédia, quando a gente se entretem a sublimar as tristezas.
pirata o meu voo, por ora, é muito raso. Só nas palavras ouso desafiar o céu.
mfc, às vezes os meus ouvidos ouvem o que diz o mar, mas agora é tempo de multidões e não se conseguem ouvir as ondas.
Cláudia, nunca te esqueças que a Elipse é a minha personagem triste.
José, isso é a vida.
Tozé, tenho a certeza que o tom da tua voz se ajusta lindamente ao tom das palavras da Elipse. Vou gostar de ouvir.

wind said...

Intenso, forte, profundo, depressivo, triste.
Agora o outro lado: Belo, exorcisas o teu interior, A tua escrita é perfeita (mas isso já o sabes).
Concluindo: corta o cordão umbilical, deixa-os ser livres e sê também tu livre:)
beijos

~pi said...

voltei dos anjos. sempre com sangue num lugar qualquer, também eu. também todos, pelo que leio . daí o nosso profundo (re)conhecimento - uns aos outros.beijo

stela said...

Texto brilhante! Profundo e bastante sentido...
O tempo passa...
bjs

addiragram said...

um texto lúcido e brilhante, onde mostras como todos os lutos têm a sua hora... Um beijo para ti

Leo said...

Parece que Agosto não te traz (ou à Elipse) muito boas recordações e muito boas vivências. Mas, embora tristes, continuam muito belas as tuas palavras. É pena que não possas tirar as férias noutras alturas, como eu faço. Mas pronto, apesar de não considerar Agosto um mês muito feliz, tenho que me contentar com o facto que foi nele que nasci. :-) Beijo

jp(JoanaPestana) said...

Vim aqui lamber-te o ego,e dar-te um abraço apertadinho
;-)**

Elipse said...

wind, infelizmente tudo o que é depressivo é intenso; é sempre preferível procurar a intensidade na sensação oposta.
luci, é bom (re)conhecer-te.
stela é mesmo uma questão de tempo para que os dias de luto acabem addiragram.
leo, parabéns por mais este agosto que desta vez fez com que a Elipse dominasse as outras personagens.
jp, terei de ir aí teceber essa abraço.obrigada.

rui-son said...

Não encontro as palavras para comentar... queria só que soubesses, que como sempre, gosto muito do que escreves.