Para resolver as más memórias podemos sempre olhar as imagens e as palavras da O'Sanji, não se sabendo onde começam umas e acabam outras, parecendo que se prolonga tudo numa sensibilidade muito especial.
Aqui vai o texto...
Photo de David Strohl
Vestido roxo com asas ou a Memória da dor
Nunca se sabe o que acontece dentro da memória quando os olhos se abrem em direcção ao tecto e as horas custam a passar. Deve ser o excesso de repouso abrindo-se, nesses momentos, o espaço às imagens do passado. E elas surgem, como se o tempo não tivesse existência e os ponteiros de todos os relógios tivessem ficado também imobilizados. Como se o tempo estivesse a vingar-se, arredando a verosimilhança das imagens guardadas na memória e fazendo soltar, desse reservatório de penumbras, a autenticidade das impressões registadas.
Se fechar os olhos centro-me toda na intensidade da dor. Por isso deixo que uma asa bata ao de leve nas pálpebras abertas e o tempo dilata-se, fluído. E os actos únicos, individuais, parados no tempo, tornam-se presentes.
Era roxa a cor do vestido que me enfiaram pela cabeça. Chegava aos pés, mesmo depois de apertadas as fitas do cinto. Levei-o para casa para sair já vestida, pela manhã. Creio que nem dormi ou, se dormi, sonhei com os anjos todos do paraíso.
Imagem bonita a dos anjos, povoando todos os presépios da infância. Coleccionava-os entre as folhas dos livros, alguns eram distribuídos pelo padre, na sua visita semanal à Escola: toda a classe de pé, “bom dia senhor prior”, e ele, muito direito naquela roupagem preta, abotoado de alto a baixo, mil botões miudinhos e uns óculos de vidros grossos com olhos pequeninos dentro. Falava-nos justamente no eixo do Cristo cruxificado, exibição diária de um sofrimento eterno, na direcção dos nossos olhos, quando tentávamos compreender a mecânica das subtracções, no quadro preto. Deve ter-nos dito que o roxo era a cor da paixão, sendo que a paixão era sempre sofrimento. Coisa estranha quando se acordava para a linguagem romanceada do amor.
Por cima do roxo, um par de asas brancas, feitas de rendas e arame, uma carreirinha de penas a esvoaçar nas pontas e fitinhas para as prender ao corpo, disfarçadas, sob o vestido. Na cabeça uma auréola dourada moldada em duas voltas encimadas por uma estrela, ilusão de estar sempre acompanhada pelo contorno da santidade.
As asas esvoaçavam em todos os espelhos e o meu sorriso compunha o voo celeste das pregas do vestido. Teria calçado sapatos brancos, provavelmente novos, provavelmente rijos, ainda não estariam moldados ao pé. Nesse tempo os sapatos eram chinelos e um anjo tinha de ser humilde. O padre dizia-nos que deveríamos fazer sacrifícios. Palavra pesada e mais pesado ainda o caminho para o paraíso, embora as imagens fossem de asas e de anjinhos de pele rosada.
No verso das pagelas os anjos deixavam um espaço para o registo do sacrifício do dia: hoje ajudei alguém a atravessar a estrada; hoje dei o meu lanche a uma menina pobre; hoje andei com sapatos apertados. Mas não é disso que me lembro. Continuo de olhos abertos para o tecto, sabendo que todo o esforço é doloroso.
Doem-me os braços, estão dormentes, quero voltar a pô-los na posição direita, quero que eles caiam pelo corpo, na vertical, mas não consigo.
Na véspera levara tudo para casa; era preciso ajustar todas as vestes ao meu corpo infantil, dar um jeito nas asas, compor a auréola e ensaiar o transporte do objecto sobre o paninho roxo, os braços estendidos para a frente e as mãos abertas. Na sacristia tinham distribuído todos os acessórios: o anjo branco levava o pano com que limparam as chagas de Cristo; o anjo azul levava a coroa; havia anjos roxos que levavam umas estrelas na mão, presas numa varinha – tão próximos das fadas – e eu, porquê eu? – transportava o feixe de varas com que lhe bateram.
A procissão saiu da Igreja, deu a volta completa à velha construção e foi percorrendo lentamente, todas as ruas da vila. À frente e atrás figuras de olhos muito tristes, de mãos postas, seguiam aos ombros de homens vestidos de roxo. A mim doíam-me os braços, sentia-os como duas peças mecânicas que deviam continuar a exibir o objecto.
Havia colchas brancas e roxas em todas as janelas, gente em todos os cantos de todas as ruas olhando para mim. Era eu que transportava o peso da maldade. Era eu que feria o divino. As minhas mãos abertas não paravam de exibir o feixe de varas com que Cristo tinha sido castigado, sangrando das feridas abertas pelas varas que os meus braços estendidos mostravam a todos.
Não sei quantas horas caminhei pelas ruas entre anjos e demónios, na tristeza do roxo com que me vestira pela manhã. As pessoas iam segredando entre si e era para mim que olhavam. Os pés doíam. Mas não é isso que me perturba a memória. São os braços, dormentes, rijos; e a intensidade da dor quando os tentava descer. E a inquietação de um desconforto que se avolumava, à medida que as asas desciam, pesando-me já a consciência clarividente de que a dor era um erro.
3 comments:
As memórias de anjos nem sempre serão dolorosas! Principalmente quando se foi um anjo branco, com asas leves, feitas pelas mãos prodigiosas de uma mãe. Não me incomodaram os braços. Torturaram-me as fitas apertadas no corpo. Mas sei que ia linda, pela mão da minha avó! E nessa altura o padre, a quem nunca chamámos prior, não nos assustava com imagens de dor. Antes fazia da célebre procissão um imenso mostruário de todos os santos que habitavam a igreja! E o meu predilecto era o S. Benedito, uma imagem de um santo negro, muito pequenina, que estratégica e muito "oficialmente" se quedava ao fundo da igreja, onde os seus iguais também ficavam!
Obrigada por me fazeres trazer à memória estes instantes que, por vezes, teimam em resistir ao chamamento, parecendo querer ficar para sempre escondidos!
P.S. - Obrigada pela tua referência ao Plan(o)Alto! Tenho sempre imenso prazer com o vosso prazer! Bjs
O texto é muito bom.... sem dúvida mais um concorrente de peso.
Ai as memórias!
Somos dois anjinhos esvoaçantes, O'sanji, quando fechamos os olhos. Salvo seja!
bgda às duas.
:)
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