Wednesday, October 12, 2005

Vestido Roxo com Asas ou A Memória da Dor

O texto da Marquesa d'Aires, no Divas e Contrabaixos , fez-me recordar uma coisa que escrevi em vésperas de bisturis e batas brancas. Tudo já resolvido mas a memória a fazer ainda das suas...

Para resolver as más memórias podemos sempre olhar as imagens e as palavras da O'Sanji, não se sabendo onde começam umas e acabam outras, parecendo que se prolonga tudo numa sensibilidade muito especial.

Aqui vai o texto...





Photo de David Strohl



Vestido roxo com asas ou a Memória da dor

Nunca se sabe o que acontece dentro da memória quando os olhos se abrem em direcção ao tecto e as horas custam a passar. Deve ser o excesso de repouso abrindo-se, nesses momentos, o espaço às imagens do passado. E elas surgem, como se o tempo não tivesse existência e os ponteiros de todos os relógios tivessem ficado também imobilizados. Como se o tempo estivesse a vingar-se, arredando a verosimilhança das imagens guardadas na memória e fazendo soltar, desse reservatório de penumbras, a autenticidade das impressões registadas.
Se fechar os olhos centro-me toda na intensidade da dor. Por isso deixo que uma asa bata ao de leve nas pálpebras abertas e o tempo dilata-se, fluído. E os actos únicos, individuais, parados no tempo, tornam-se presentes.
Era roxa a cor do vestido que me enfiaram pela cabeça. Chegava aos pés, mesmo depois de apertadas as fitas do cinto. Levei-o para casa para sair já vestida, pela manhã. Creio que nem dormi ou, se dormi, sonhei com os anjos todos do paraíso.
Imagem bonita a dos anjos, povoando todos os presépios da infância. Coleccionava-os entre as folhas dos livros, alguns eram distribuídos pelo padre, na sua visita semanal à Escola: toda a classe de pé, “bom dia senhor prior”, e ele, muito direito naquela roupagem preta, abotoado de alto a baixo, mil botões miudinhos e uns óculos de vidros grossos com olhos pequeninos dentro. Falava-nos justamente no eixo do Cristo cruxificado, exibição diária de um sofrimento eterno, na direcção dos nossos olhos, quando tentávamos compreender a mecânica das subtracções, no quadro preto. Deve ter-nos dito que o roxo era a cor da paixão, sendo que a paixão era sempre sofrimento. Coisa estranha quando se acordava para a linguagem romanceada do amor.
Por cima do roxo, um par de asas brancas, feitas de rendas e arame, uma carreirinha de penas a esvoaçar nas pontas e fitinhas para as prender ao corpo, disfarçadas, sob o vestido. Na cabeça uma auréola dourada moldada em duas voltas encimadas por uma estrela, ilusão de estar sempre acompanhada pelo contorno da santidade.
As asas esvoaçavam em todos os espelhos e o meu sorriso compunha o voo celeste das pregas do vestido. Teria calçado sapatos brancos, provavelmente novos, provavelmente rijos, ainda não estariam moldados ao pé. Nesse tempo os sapatos eram chinelos e um anjo tinha de ser humilde. O padre dizia-nos que deveríamos fazer sacrifícios. Palavra pesada e mais pesado ainda o caminho para o paraíso, embora as imagens fossem de asas e de anjinhos de pele rosada.
No verso das pagelas os anjos deixavam um espaço para o registo do sacrifício do dia: hoje ajudei alguém a atravessar a estrada; hoje dei o meu lanche a uma menina pobre; hoje andei com sapatos apertados. Mas não é disso que me lembro. Continuo de olhos abertos para o tecto, sabendo que todo o esforço é doloroso.
Doem-me os braços, estão dormentes, quero voltar a pô-los na posição direita, quero que eles caiam pelo corpo, na vertical, mas não consigo.
Na véspera levara tudo para casa; era preciso ajustar todas as vestes ao meu corpo infantil, dar um jeito nas asas, compor a auréola e ensaiar o transporte do objecto sobre o paninho roxo, os braços estendidos para a frente e as mãos abertas. Na sacristia tinham distribuído todos os acessórios: o anjo branco levava o pano com que limparam as chagas de Cristo; o anjo azul levava a coroa; havia anjos roxos que levavam umas estrelas na mão, presas numa varinha – tão próximos das fadas – e eu, porquê eu? – transportava o feixe de varas com que lhe bateram.
A procissão saiu da Igreja, deu a volta completa à velha construção e foi percorrendo lentamente, todas as ruas da vila. À frente e atrás figuras de olhos muito tristes, de mãos postas, seguiam aos ombros de homens vestidos de roxo. A mim doíam-me os braços, sentia-os como duas peças mecânicas que deviam continuar a exibir o objecto.
Havia colchas brancas e roxas em todas as janelas, gente em todos os cantos de todas as ruas olhando para mim. Era eu que transportava o peso da maldade. Era eu que feria o divino. As minhas mãos abertas não paravam de exibir o feixe de varas com que Cristo tinha sido castigado, sangrando das feridas abertas pelas varas que os meus braços estendidos mostravam a todos.
Não sei quantas horas caminhei pelas ruas entre anjos e demónios, na tristeza do roxo com que me vestira pela manhã. As pessoas iam segredando entre si e era para mim que olhavam
. Os pés doíam. Mas não é isso que me perturba a memória. São os braços, dormentes, rijos; e a intensidade da dor quando os tentava descer. E a inquietação de um desconforto que se avolumava, à medida que as asas desciam, pesando-me já a consciência clarividente de que a dor era um erro.

3 comments:

O'Sanji said...

As memórias de anjos nem sempre serão dolorosas! Principalmente quando se foi um anjo branco, com asas leves, feitas pelas mãos prodigiosas de uma mãe. Não me incomodaram os braços. Torturaram-me as fitas apertadas no corpo. Mas sei que ia linda, pela mão da minha avó! E nessa altura o padre, a quem nunca chamámos prior, não nos assustava com imagens de dor. Antes fazia da célebre procissão um imenso mostruário de todos os santos que habitavam a igreja! E o meu predilecto era o S. Benedito, uma imagem de um santo negro, muito pequenina, que estratégica e muito "oficialmente" se quedava ao fundo da igreja, onde os seus iguais também ficavam!
Obrigada por me fazeres trazer à memória estes instantes que, por vezes, teimam em resistir ao chamamento, parecendo querer ficar para sempre escondidos!

P.S. - Obrigada pela tua referência ao Plan(o)Alto! Tenho sempre imenso prazer com o vosso prazer! Bjs

mfc said...

O texto é muito bom.... sem dúvida mais um concorrente de peso.

Elipse said...

Ai as memórias!
Somos dois anjinhos esvoaçantes, O'sanji, quando fechamos os olhos. Salvo seja!
bgda às duas.
:)