Saturday, September 13, 2008

Ficcionar 6. (ligando as margens)


Tu que escreves deverás estruturar toda a história antes da primeira palavra, sem descuidar a caracterização das personagens. Mas com avisos, não vão os leitores querer identificar gente da vida real com a mulher que anteviu a aventura e voou para o outro lado do mar ou o homem enfeitiçado pelos olhos da estrangeira.
Não me parece que alguém os reconhecesse na cidade, embora e estranheza da situação pudesse chamar os olhares alheios. Nem creio que isso os tivesse incomodado. Eram seres únicos, abrasados pelo sol forte, quando era dia, e pelo calor dos corpos, quando as estrelas cintilavam sob a tranquilidade do céu. Por isso tens de descrever as horas felizes que ambos viveram nesse tempo escasso, alongado nas ruas estreitas, enquanto, de mãos dadas, espreitavam a vida em todos os becos.
Não te esqueças de dizer que ele voltou a cantar-lhe baixinho a música curva e que ela lhe ensinou as principais palavras.
Foi pelo menos assim que ela contou depois do regresso chorado, uma dor no peito à despedida e a certeza de ter vivido nas margens da ficção.
Se te distanciares muito não conseguirás perceber a intensidade do sentir que foi o deles.
Podes ir aos sítios, para poderes descrever todos os detalhes, os vividos e os outros, mas corres sempre o risco de vires a ser tu, na primeira pessoa, a ligar as margens.



5 comments:

addiragram said...

Belíssimo "dueto".Continua! Estamos cá a ouvir,a seguir, a sonhar...

Fatyly said...

Independentemente de nunca deixarem de ser quem são como "pessoa", não há palavras que descrevam "horas felizes" mesmo que (des)ligados por margens distantes.

Metáforas fabulosas!

Claudia Sousa Dias said...

Bela sugestão para principiante desinspirados como eu!!!


beijos


;-)


CSD

Mónica said...

publica, edição de autor, qq coisa, um pequeno conto.

a forma como estás a escrever, para mim é uma descoberta, terceira/primeira pessoa, a assunção do narrador que afinal não passa de um "autobiográfico", deixemo-nos de tretas, as boas histórias são as vividas, sim, eu acredito que a realidade é que produz a ficção, a piada está no narrador saber trocar a ordem dos acontecimentos ou acrescentar detalhes, retalhos de outros momentos, o puzzle com as peças desordenadas...olha momentos de inspiração é o que é!!!!!!

Mónica said...

a mediocridade não mora em ti.
ser feliz ("o final feliz" convencional) é uma tentação mas não combina com a tua excelência.
que luta!
;-)

don't worry be happy