Tuesday, October 24, 2006

Malha o ferro

ao meu avô que era ferreiro

É uma ponta incandescente que tem de ser trabalhada até ter forma, um trabalho que deforma a forma das tuas mãos, que faz de ti o obreiro da matéria, da miséria, da pobreza que transportas quando te dizem que um dia vão pagar-te a forma inteira com que desbravam a terra, as enxadas, as enchós, as forquilhas, as tenazes, tudo moldado a preceito, ao teu jeito, um jeito que não sabias mas que te fez crescer gente, na bigorna em que tu malhas e dás forma ao ferro quente, saído do forno raso, uma ponta incandescente que o fole soprou por dentro até a deixar capaz de ser moldada a preceito, ao jeito das tuas mãos que lhe vão malhando a forma, enriquecendo-te os modos com que dás jeito às enxadas, às enxós, às forquilhas, à tenaz que são os dedos, à força com que tu gemes cadenciando a batida, triste vida que te obriga a malhar até ser noite, pintado a negro o teu rosto, enfarruscado, engelhado, moldado a fogo o teu corpo, já curvado do cansaço, já sarnoso no cotim da camisa acastanhada, cor do ferro ferrugento que tu moldas a preceito, na solidez da bigorna onde o malho bate forte, na má sorte, na má vida, esquecida no copo exausto com que terminas o dia, no balcão de uma taberna onde te servem fiado, onde escondes a desgraça de ter nascido entre o ferro e o cansaço de o malhar e a vertigem da fraqueza disfarçada pela força que a fibra rija do corpo, moldado a fogo e a fole, transformou na forma exacta de um homem de mãos compridas, dedos longos com que agarras a tenaz, o malho, o ferro, a bigorna, o fole, o carvão, a enxada, acabada, encabada, procurando a forma inteira para entrar pela terra dentro, arrancando à pedraria um destino ferrugento, marcado a ferro e a fogo, onde o malho malhou forte, forjado à força da fibra que deixaste como herança à gente a quem deste forma.



Saturday, October 14, 2006

Lenga-lenga-lenga

Escher

Dou um passo no espaço, colo os pés às areias, prendo os passos e os braços, localizo as estrelas, fecho os olhos e canto, dou um salto no escuro, olho a lua a nascer, sinto o mar à distância, ouço os montes e os vales, as colinas, as rias, a folhagem que mexe; sinto as asas que nascem, debutando nos braços, sinto as ondas que galgam, as fronteiras riscadas, os ribeiros que correm, os rebanhos que aninham, gotas de água nas nuvens, as gaivotas rasando, o mar em tons de bruma e a forma a perder-se, entranhada na névoa; sei de um rio que brotou, sei de um peixe dourado, sei da ponte que liga, sei dos eixos da vida, sei dos passos parados a lembrar as viagens, sei do sangue nas águas e das lutas eternas; vi os homens nas naus, vi o vento nas velas e o sangue a espalhar-se sobre as águas sagradas; e uma barca sem quilha e uma arma disforme disparando às escuras sobre os povos sem culpa, sem uma nesga de espaço, que se diga inocente, sem um metro de terra ser poupado à sangria, sem que um deus ilumine a fadiga dos dias, sem que um passo no espaço diga ao corpo que avance, diga ao corpo que exija, que antecipe a surpresa, que consagre o momento em que o espaço se alarga e a vida se espraia.
Dou um passo no espaço, dou um salto no escuro, solto os eixos da vida, digo ao corpo que dance e às asas que voem.

Wednesday, October 11, 2006

Aristóteles - Sobre a Educação

É claro que venero os gregos.
Em linguagem mais ou menos lírica, na medida do meu próprio estilo, tenho deixado aqui hinos aos deuses. Sabe-me bem louvá-los na sua harmonia e na perfeição das suas formas. A figura humana é de uma beleza admirável.
Gosto também das simbologias presentes nos mitos e das suas explicações fundadoras.
Contudo, há outros aspectos que não merecem menor destaque no modo de pensar dos antigos gregos e as palavras de Aristóteles que hoje aqui deixo estão mais actuais do que nunca:


Que o legislador se deve ocupar antes de tudo da educação da juventude, isso ninguém pode contestá-lo. E efectivamente os Estados que se desinteressem deste dever causam um grave dano às respectivas constituições, pois é necessário que a educação recebida seja adaptada a cada forma particular de constituição. (…) E dado que há um fim único para o Estado no seu todo, é evidente que também a educação deve necessariamente ser uma e a mesma para todos, e que o cuidado de a assegurar cabe à comunidade e não à iniciativa privada; (…) E não é sequer exacto pensar que um cidadão se pertence a si mesmo; na realidade, todos pertencem ao Estado, pois cada cidadão é uma parte do Estado, e o cuidado de cada parte está naturalmente orientado com vista ao cuidado do todo.”
Aristóteles, A Política

Saturday, October 07, 2006

Apolo em Delfos




Vi-o chegar no dorso de um golfinho, salpicando a pedra das colunas com o aroma das folhas de loureiro. Saiu do rasgo das nuvens e a terra inquietou-se no vapor da rocha sibilina.
Nas águas ondulantes espelhou-se o recorte da nudez e a folhagem murmurava a elegância, entre a timidez e a ousadia dos sussurros. Fechei os olhos a fixar-lhe a forma das feições.
Corriam pela encosta as musas ao som das cordas da cítara. Coros de melodias estremeciam sob a harmonia dos seus dedos.
Vi-lhe a placidez dos gestos na calma com que as mãos dardejavam os raios sagrados do Sol.
Apolo chegava antes dos homens e triunfava no cimo das ruínas.
Em Delfos.


Friday, October 06, 2006

evolucionismo e/ou criatividade?

Quantas milhas terá Calatrava percorrido, desde o engenho romano ...




Ponte de Lima (ponte romana sobre o rio Lima)

Bilbao (ponte pedonal sobre o rio Nervión)

Tuesday, October 03, 2006

Bilbao



Espelhei-me em vidro robusto, inteira nas convicções, confiante no domínio das palavras. E tudo foi acontecendo, desde os passeios descontraídos que a cidade permitiu, à exibição pública do resultado de esforços entrecortados por deveres quotidianos, meses a fio.
Agosto foi de recolhimento; algumas vezes de desespero; agora é já Outono outra vez, parecendo ter-se cumprido um ciclo de destemperos. Foi por isso o tempo certo para fazer saltar para fora da curva elíptica a natureza graciosa que invento e visto em dias de voz cristalina. Tudo dobrado no recorte da água. Tudo numa sala fechada no espaço mas aberta ao mundo ali presente e às ideias que chegaram até mim como se fosse ainda e só adolescente curiosa.
Venho enriquecida desta viagem à Universidade de Deusto, onde o saber parece forrar as paredes antigas dando-lhes ainda mais imponência. E creio ter enriquecido também o conhecimento dos outros. É tempo de registar sem dramas a chegada do Outono e procurar nele as cores do sucesso.
Não tem de ser o brilho metálico e desalinhado do Guggenheim. Contudo, na irregularidade das linhas e das formas achei a coerência e a beleza que a água espelha.