Tuesday, October 24, 2006

Malha o ferro

ao meu avô que era ferreiro

É uma ponta incandescente que tem de ser trabalhada até ter forma, um trabalho que deforma a forma das tuas mãos, que faz de ti o obreiro da matéria, da miséria, da pobreza que transportas quando te dizem que um dia vão pagar-te a forma inteira com que desbravam a terra, as enxadas, as enchós, as forquilhas, as tenazes, tudo moldado a preceito, ao teu jeito, um jeito que não sabias mas que te fez crescer gente, na bigorna em que tu malhas e dás forma ao ferro quente, saído do forno raso, uma ponta incandescente que o fole soprou por dentro até a deixar capaz de ser moldada a preceito, ao jeito das tuas mãos que lhe vão malhando a forma, enriquecendo-te os modos com que dás jeito às enxadas, às enxós, às forquilhas, à tenaz que são os dedos, à força com que tu gemes cadenciando a batida, triste vida que te obriga a malhar até ser noite, pintado a negro o teu rosto, enfarruscado, engelhado, moldado a fogo o teu corpo, já curvado do cansaço, já sarnoso no cotim da camisa acastanhada, cor do ferro ferrugento que tu moldas a preceito, na solidez da bigorna onde o malho bate forte, na má sorte, na má vida, esquecida no copo exausto com que terminas o dia, no balcão de uma taberna onde te servem fiado, onde escondes a desgraça de ter nascido entre o ferro e o cansaço de o malhar e a vertigem da fraqueza disfarçada pela força que a fibra rija do corpo, moldado a fogo e a fole, transformou na forma exacta de um homem de mãos compridas, dedos longos com que agarras a tenaz, o malho, o ferro, a bigorna, o fole, o carvão, a enxada, acabada, encabada, procurando a forma inteira para entrar pela terra dentro, arrancando à pedraria um destino ferrugento, marcado a ferro e a fogo, onde o malho malhou forte, forjado à força da fibra que deixaste como herança à gente a quem deste forma.



19 comments:

mfc said...

Uma escrita volteante, com um ritmo que corta a respiração, que torna e retorna aos mesmos utensílios como as muitas pancadas necessárias para moldar o ferro. Fica-se ofegante depois de malhar esta leitura que não nos permite um segundo de distracção.
Formidável.

~pi said...

mais que belo, mais que sonoro***
e que ofegância, sim!
cresci à beira duma forja, nunca discerni se era o céu se o inferno. parece-me que todos os mitos que estudei e redesenhei mais tarde são habitados pela magia malhada nos quentes ferros desse lugar...beijO

Bastet said...

Uma ode de saudade e dignidade. Parabéns está lindo.

Anonymous said...

sensacional!

wind said...

Poxa acabei sem fôlego!
Li a um ritmo alucinante que imposeste na escrita, com curvas, circulos, pancadas, e mais palavras elípticas:)
Está fantástico!
beijos

Rosario Andrade said...

Boa noite, Elipse!
Muito, mas muito bom! Só os textos escritos com a pureza da saudade e com o coração têm esta força. O ritmo faz com os leitores sintam o ambiente como se lá estivessem! brilhante.
Bjico ancho

antónio paiva said...

......fantástico, aliás é sempre.........


P.S. Lê e divulga o meu convite


Beijinhos e bom dia

Anonymous said...

Mas escreve Eliptica e maravilhosamente bem!
Está linkada:)

José Manuel Dias said...

...não somos espectadores...sentimo-nos protagonistas.

addiragram said...

Belíssima "bigorna" a tua!

Anonymous said...

quando digo sobre algo teu: inexcedível!!!
Tu voltas e...excedes-te...por isso tem sido tão fantástica esta viagem pela linha das tuas palavras.

Anonymous said...

com tanto blog, troco as voltas todas...sabes que era eu...

peciscas said...

Que bela e comovente homenagem a esse homem de trabalho.
Escrita com a qualidade literária a que já nos habituaste.

Anonymous said...

:)

Anonymous said...

O ritmo é alucinante e a dignidade fo ferreiro aparece. Lindo!

rocha said...

Que é feito de ti?
Porquê esta ausência?
Precisamos da tua escrita.
Beijos

Anonymous said...

Bonitas palavras, a um ritmo acelerado. Não, ao ritmo certo para a alma que transmites.

Anonymous said...

Bela malha! bela mão que bem talha o que vai no coração.

Anonymous said...

Obrigado por este testemunho que eu também compartilho e mellhor não seria capaz.
J.P