Sunday, November 05, 2006

... entre a porta e a lua cheia

Tenho sempre a sensação de ter ficado à porta. Entre a porta e o tempo que vai escurecendo as paredes. O lado de dentro. Entre a porta e a lua cheia que as marés transportam. Chamam-me do lado de fora as marés de arrasto e eu firmo os pés.
Tenho sempre a sensação de ter uma porta entre mim e o que não fiz; entre mim e o que não faço. E um relógio nas mãos.
Procuro com os olhos um lugar especial, um lugar como o lugar antigo onde o tempo não deixa regressar. Queria sentar-me, inteira, do lado de dentro, na calma de um lugar paciente. Tenho saudades de estar completa nos risos e nas brincadeiras a quatro, quando éramos quatro. Saudades que o tempo agrava em vez de aligeirar.
Vejo-me; observo-me; ali entre a porta e o lado de dentro onde nunca estou inteira. E no lado de fora está sempre uma temperatura que me incomoda.
A lua ao alcance das mãos e eu entre o abrir e o fechar da porta.
Frases elípticas; frases de não sair daqui, de não chegar a lugar nenhum.
À porta, sem saber para onde dirigir os ponteiros do relógio.

18 comments:

Anonymous said...

Fiquei muito sensibilizado pelas suas bonitas e comoventes palavras acerca do meu antepassado José Narciso Monteiro, pessoa que muito estimo e por quem nutro uma profunda e veneranda simpatia, pelo seu real valor, nobreza de carácter e filantropia. De todos os meus antecessores – eu que sou genealogista – é a personagem que mais prezo. Por isso, esta semana vou dedicá-la à publicação de fotografias dos meus antepassados do ramo Monteiro, gente ilustre, recuando algumas gerações, até ao meu tetravô. Será sempre bem-vindo.

mfc said...

Todos temos uma fixação... queremos abarcar mais e mais. Está na nossa natureza.
Há sempre uma última porta para ser aberta. Que esconderá ela do lado de lá?!

xeremias said...

Há portas que estão permanentemente abertas. E que mesmo assim parecem portas que se fecham. Há risos e brincadeiras que ficaram para sempre o lugar da perfeição. São eles o paradigma do equilíbrio e da paz. Mas não é certo que a paz seja um objectivo. A paz virá um dia com a morte. Antes disso há que cumprir o ser. E como não se sabe o que é, a função é sempre tentar. O que faz mal é perder antes da batalha, recuar para a defesa sem saber se há ataque, pensar sempre que o lugar da vitória está predestinado. Cumprir o que somos não tem uma forma única. Nem tem a mesma forma todo o tempo. Mas ficar à porta não serve para nenhum lugar e faz crescer os cristais da amargura que depois levam muito tempo a dissolver em lágrimas. Talvez valha a pena procurar a lua com os gestos que o corpo sabe. E os relógios digitais não têm ponteiros para não serem confundidos com bússolas.

Fatyly said...

Francamente bonito e todos os dias ao acordarmos é mais uma porta que se enfrenta, pesada ou não...surpreendente ou não!

Anonymous said...

Do lado de fora está a Vida que é também dolorosa, mas que é a Vida. Ficando do lado de dentro vivi-se menos completamente, só como espectador.
Beijinho

rui-son said...

Às vezes preocupamo-nos tanto com o tempo, que nos perdemo a olhar para o relógio, e acabamos a ficar sempre do lado fora porque temos medo, de não ter tempo.

~pi said...

enroscares o corpo no relógio e dormir muuuuuito tempo...
...até o tempo ser nada, até os ponteiros cansados partirem!?
abraçar a lua, onde tudo é macio e morno (dizem) e partir assim sem saber pra onde.
e depois,
talvez abater a ideia das portas...?
BEIJO

Joana said...

"Abre para cá" (!), já escrevia o Jacinto Lucas Pires. ;) Jinhos.

Toze said...

Gosto das expressões: " do lado de dentro, do lado de fora" e das: "frases de não sair daqui, de não chegar a lugar nenhum.

E como gostei do teu "Malha o ferro"

Pergunta: E para quando um livro, linda Elipse ?

wind said...

Mais logo comento:)

wind said...

Ora bem depois de reler, só pergunto: O que te prende se a porta já está aberta?
É só ires...
beijos

Elipse said...

tens razão. é uma questão de não saber, mesmo, sair de um lugar que nem agrada nem desagrada.

Lúcia said...

eu estou do lado de fora, ainda e cada vez mais longe.

ivamarle said...

tens sempre o condão de me transportar para outras viagens:

(...)Basta abrir a porta e vejo-te,
Arquitecto impassível das tuas
Próprias sombras, preso
pela vertigem do silêncio a este
chão usado, a esta mesa, aquela
súbita reprodução dos girassóis
de Van Gogh – devoradores
olhos vegetais e cegos
para sempre, loucura
e primavera no meio de férias
transitórias e intensas
e pontas de cigarro e restos
de batôn no lábio triste de
uma chávena vazia.
(...)
À mesa solitária apareces
Por vezes, de surpresa,
E todas as paredes entram e ficam
Em mim.
(...)
À noite, quando entro, dispo-te
Com a lâmpada do tecto mas
Nas cortinas tu cerras
As pálpebras e as tuas mãos
Guardam-te sob as portas
Do armário e ocultas
O rosto entre as madeixas
Das roupas penduradas.

VI

Assim te faço cúmplice
Do encontro impossível com a amada
Longe, e releio a última
carta, o calor instantâneo
dos dedos ausentes ali presos
a cada linha como uma
carícia. Depressa, já posso
fechar os olhos. Boa noite, digo
e volto a dizer até que algo
no tempo, uma flor, uma frase,
as mãos do escuro apertadas
nos nervos, te trazem
de novo para entrarmos
juntos no sono. Até amanhã...

Beijinhos e ...até amanhã....

Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

não sei se, a partir de determinado momento na vida, podemos avançar sem deixar qualquer coisa para trás, nem que seja uma espécie de véu que se prende na porta que fechámos, e que custa muito rasgar.

enfim, às vezes rasga-se mesmo o véu. mas leva algum tempo até olharmos para o farrapo sem pena.

e depois, outras vezes, a maior parte das vezes, de certeza que nos envolvemos nele e recuámos. e ficámos a olhar a porta que fechámos.

é difícil conhecer os limites entre coragem e bom senso.

SoNosCredita said...

"Tenho sempre a sensação de ter uma porta entre mim e o que não fiz; entre mim e o que não faço. E um relógio nas mãos."

pois, e a pressão que o relógio exerce é o mais difícil de gerir...

neste momento, não sei mesmo para onde apontar os ponteiros!
mas quero dar-me tempo para o poder fazer.

Claudia Sousa Dias said...

Nem sempre planeamos aquilo que fazemos...

Mas se fizéssemos tudo o que planeámos a vida deixava de ter graça...


Chega o tempo de tomar um rumo diferente e partir para novas experiências...


CSD

éme said...

Foi-me mostrado o seu blog e fiquei encantada! Tomei a liberdade de usar este seu texto para um momento de reflexão, durante uma oração (não deixando, claro, de fazer referência à fonte e à autora).
Espero continuar a ler as suas bonitas palavras.
Um sorriso