Wednesday, November 08, 2006

Selene

à minha filha

Era o travo do meu pão a saber-te a pouco e tu a amassares com raiva uma massa tenra já crestada. Ou nem por isso mas simplesmente porque esmurram a farinha e saltam e se soltam, as crias, quando chega o dia.
Era um gosto gasto, insisto. E a ira colada às tuas asas com sonhos de Ícaro.
Era o casario da beira-mar a chamar-te para o centro e tu em desejo de sair do labirinto na vertical, por sobre as águas do rio e sem pontes.
Era o atrito das coisas próximas a faiscar e eu a subir em vão os degraus para te travar na torrente bruta das palavras. Sem te alcançar. Sem nos vermos frente a frente por ser nas costas que eu carregava o fardo cujo peso dobrei em culpas.
Era a tesoura a cortar o fio das mãos esticadas que se tocavam ainda ao de leve mas a medo.
Era a solidez no desafio dos olhos, heranças minhas; pão de mistura com travo a passado firme, pronto a enfrentar o dia novo, na vertical, mas repousando aos poucos na ponte que tecemos de uma margem até à outra.

21 comments:

Bastet said...

Como custa a distância daqueles em que tocamos.

mfc said...

As águas passadas moldaram as margens do nosso rio.
Hoje temos que nos continuar a escoar entre elas!

Anonymous said...

O passado começa a moldar as margens do rio mas o presente pode alagá-las, forçando se necessário, sempre, todas as idades boas para isso. O futuro uma vista larga e serena.

Fatyly said...

Há já alguns anos que rebentei com essas formas/margens e o meu rio, bem ou mal, vai por onde quero deixam-me sempre um belo luar!
És exímia em metáforas e provocas no leitor diversos sentimentos.

Beijos!

Fatyly said...

"deixando-me"::):)

prologo said...

Cinicamente poderia dizer que o sofrimento existe apenas para logo a seguir gerar palavras belas. Não é assim. O sofrimento é mesmo inútil. Mas sempre ficam as palavras belas...

K. said...

O sofrimento é uma forma de aprendizagem. Nada é inútil nesta vida, tudo tem uma razão de ser. O que não significa que tenhamos de (ou devamos) compreendê-la.

wind said...

Magnificamente escrito, rompe com o que te prende, solta as amarras, corre sem olhar para trás para a frente, pula e já estás do outro lado do rio:)
beijos

Elipse said...

Toquei-lhe quando a embalava, há 23 anos.
Não! Toquei-lhe ainda antes, ou tocámo-nos. Para sempre.
Mas as crias nunca são nossas. Têm vida própria desde o primeiro momento.

Lúcia said...

muito do que escreves toca-me e faz com que as palavras pareçam minhas. não sei escrever assim, mas sei o sentir.

Fatyly said...

de facto elipse e quem pensar o contrário sofre p'ra caramba, daí ter dito o que disse...

lima subscrevo as tuas palavras!

Anonymous said...

Fingir que são metáforas as cicatrizes do crescimento é tão belo como fazer nascer em cada mágoa uma flor, diria mais, um girassol!!....

"pedradagalé"

ivamarle said...

Continuas a patrocinar-me esta viagem alucinante, pelas tuas escritas e memórias de outras...

À tua volta existe um vento antigo
Sempre pronto a lembrar pelo teu corpo
A proa dos barcos e a densa
alegria das viagens...

dentro de ti sei apenas que amas
muitas coisas belas, algumas
coisas justas e difíceis,
e como por dentro dos teus olhos temes
as pequenas ciladas da alma
e a oblíqua vertigem de estar só
nos dias vazios;

e embora não mo digas vê-se bem
a agitação com que procuras
saber do teu nome entre os espelhos
dos outros: na coragem, no saber,
na ternura ou até na companhia
mais ou menos inútil embora
desejada ( e em cartas, silêncios, ciúmes)
de quantos te cercam, de quantos devolvem
os ecos doirados da tua passagem.

E assim vais colhendo
O que há de igual (ou quase) entre
Perder e ganhar – se a derrota
E a vitória forem igualmente
Livres de angústia.
(...)

aqui, onde essa dureza nada vale
onde o próprio saber apenas torna
mais ardente e triste
combatê-lo e desejar-te.

E no entanto foi preciso
(era preciso) desejar-te assim
para saber perder-te
para saber ganhar-te até onde
sejas livre e única e diversa – aí
onde Deus nos ensina (sempre)
quem já não somos, quem ficámos
um no outro mas sem nós

apenas mais velhos
apenas mais sós...


estás quase a conquistar o cantinho que o Vitor Matos e Sá ocupa no meu coração; é que a ti, eu conheço-te pessoalmente e parecendo que não, a escrita aliada ao conhecimento de quem a exerce, é sempre uma mais valia...

Elipse said...

chorei, Iva...

Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

eu levo algum tempo a digerir os teus textos. este, já li várias vezes. e ainda não sei o que te dizer.

já volto ;)

Elipse said...

se os textos forem imediatos são assim como notícias de jornal para a gente ler enquanto toma café.

ela foi selene na sua fase mítica. também foi no travo do pão que lhe dei que encontrou as fantasias.

ela agora tem uma cozinha para limpar e loiça para lavar. mas está sólida, lá na outra margem do tejo. daqui quase lhe toco e é bom.

wind said...

Peço desculpa, ignora o meu 1º comentário pois não tive a sensibilidade suficiente para entender o teu texto.
Está cheio de metáforas e escrito de uma maneira que não cheguei lá:(((
Desculpa.
beijos

Anonymous said...

Li, fui lá baixo espreitar, reli e voltarei.
Não posso ir embors sem dizer que me revejo inteiramente nos comentários dos teus leitores, e não mereces baboseiras de circunstancia

CHIC-HANDSOME said...

good picture

Claudia Sousa Dias said...

Também tive de cortar um fio há bem pouco tempo. Mas ou isso ou o mergulho num abismo de trevas...

Beijo


CSD

Claudia Sousa Dias said...

Mas foi um corte um bocadinho fiferente daquele a que te referes no post :-)

CSD