Agito a pressa ao volante e corro, corro…
Comecei cedo e já enquadrei objectivos em matrizes, antes de enquadrar imagens e equacionar a exigência, diminuindo-a cada vez mais, não vá a frustração dos resultados ser tão grande como a desta manhã de sábado; acordei tarde e o frigorífico está vazio. Começa a pesar-me a consciência por ter dormido mais uma hora.
Agito o dia, agito a pressa; ponho as compras no porta-bagagens e quando o vulto se aproxima digo apressada: "Hoje não, hoje já não dou mais nada a ninguém". Ele diz então que dará ele e deixa-me nas mãos um cartão com desejos de um Bom Natal. E sorri depois, quando eu torço as mãos para desfazer a curva e sigo em corrida. Tenho pressa. Penso no assunto ou sigo? Era para recuperar toxicodependentes ou para lhe alimentar o dia?
Dentro do supermercado já as renas me tinham enfastiado e as cercaduras de bolas brilhantes eram excessivas. Música de Natal e gente de olhos enrolados nas prateleiras à procura das prendinhas; desculpe, desculpe, quero chegar à fruta e ao leite mas a estratégia é colocar na entrada tudo o que não faz falta e mais os miúdos do banco alimentar que não deixam escapar uma só pessoa sem lhe porem nas mãos um saco. Por que é que tenho de ser eu?
Ontem recebi uma carta para mandar dinheiro por conta de uma vacina: duas quadrículas duas vacinas; ou dez vacinas para deixar viver mais crianças no mundo, diziam. Pus a carta no lixo; não deviam ser os Estados a financiar o direito à Vida? Sei que querem deixar morrer os velhos, peso inútil, fonte de gastos. Mas as crianças senhor...
Também a mim me fazia falta uma vacina contra a pressa; ou contra as memórias de Dezembro a chegarem violentas; porém são outras as coisas que compro na farmácia e dou um saco cheio de comida ao miúdo que me bate à porta, que não é miúdo mas não cresceu e não tem mãe; e desconto metade do que ganho para o Estado-Senhor alimentar quem nada tem (é Dezembro... deveríamos acreditar?!) e pago as ampliações das gravuras para colar no quadro com bostik e as cartolinas e as fotocópias extra e os óculos que ampliam as letras cada vez mais pequeninas pela noite dentro; e as propinas dos filhos e o pão de cada dia e os juros do empréstimo; e não cedo, juro que não cedo à pressão diária dos telefonemas para me darem um cartão de crédito sem encargos de anuidade.
Sou privilegiada por não cumprir a saída diária depois das seis da tarde? Ao serão compenso e não me deito sem ter na pasta os materiais que saem destas teclas e de uma imaginação quase gasta, quase apagada, para que a manhã seguinte não me apanhe desprevenida.
Compenso? Talvez devesse deitar-me mais tarde, não consegui fazer tudo o que queria!
Ao sábado, porém, deveria ir ao cinema. Ou ver o mar. Não tenho camisas para engomar nem quem as vista e ainda bem porque posso prolongar o serão sem me chamarem para a obrigação nocturna com hora marcada. Alívio!
Agito a pressa, agito, agito, agito. Se vou ao cinema tenho de passar pela multidão que se passeia pelas montras à procura das prendinhas; e ver o brilho das bolas presas ao verde fingido das árvores de Natal. Se vou ver o mar falta-me tempo para os papéis amontoados na secretária. E, pior do que isso, vejo no mar os Dezembros que passaram... e a memória do som dos risos e do cheiro dos fritos e das luzes a piscar nas árvores de Natal do passado nunca me animam.
Dezembro traz sempre o mesmo incómodo, anos a fio, anos a fio…