Friday, February 10, 2006

Os dias

Risco os dias outra vez. Risco a vontade, a força, a esperança, a persistência.
Depois lido com as sobras a montante e estilhaço-me em fragmentos aguçados.
Limpo o sangue. Forço um sorriso no espelho e ele devolve-mo triste.
Procuro as causas, as razões, as justificações. Podem ser as falas, as que as vozes deixaram nos ouvidos e as outras que não tiveram voz nem tempo. Podem ser as memórias que vêm sempre tocar os dias invernosos. Podem ser as correrias, as loucuras, os anos que passam, as rugas que aparecem e se disfarçam com o cuidado das manhãs que prometem dias, às vezes noites. Recuso depois as noites e fecho-me nos dias. Dias a fio. Dias em que o cinzento vem do céu e toca o chão e eu lá dentro sem janela de fuga porque as encerro. Envolvo-me em neblina e gelo. Digo que pode ser da chuva, desta chuva que gela os ossos e os pensamentos quando o riso afrouxa. Dias houve em que as gotas na janela me inspiraram. E me enlevaram. E me sugeriram o conforto da companhia colada à pele mesmo que ausente. O frio não vem de fora, repito. É do riso frouxo, do riso que já não mora nesta casa e me surpreende quando, como ontem, alguém ri e eu observo, estranha, depois de muitos dias sem saber onde mora a vontade de acordar.
Resisto ainda um pouco. Não, não vou precisar de ajuda, isto compõe-se.
Depois pergunto-me se há um lugar da casa onde procurar conforto como menina em busca de colo. E vou. E lembro-me, exactamente no mesmo instante, que estou a riscar os dias e a vontade e a força e a persistência. E que as sombras se estilhaçam para dentro e me ferem sem razão.

15 comments:

Carlos Estroia said...

Primeiro exteriorizas os teus sentimentos(?) pelo risco, depois tentas abarcar a natureza para os compreenderes, depois que nada resulta tentas só um cantinho no mundo exterior onde te possas sentir confortável e é ai que vem a memória e recomeça tudo de novo.

Não deixa de ser engraçado.

Bons dias de sol para ti.

Ps: "Ou o teu real, que um e outro são faces da mesma coisa, nas palavras. Ou nas vidas." - Tem que se lhe diga, prefiro o oposto a vida dá-nos a imaginação para fazermos novas realidades através da palvra.
Abraços

ivamarle said...

isto exige um olhar mais atento...amanhã leio-te, agora os olhos fecham-se-me...Bom fim de semana!

K. said...

Escreves muito bem.

Elipse: omissão de uma ou mais palavras que se subentendem

É isso mesmo, escreves palavras e deixas que outras se escondam por detrás dessas. ;)

mfc said...

Nem tudo está dito, mas muito está subentendido.
Nós somos sobretudo o nosso ser interior. O outro... é apenas suma construcção.

Maria Manuel said...

Um texto em que leio uma maneira tua de dizer o que muitas vezes experimentamos...

Impensamental said...

Bom dia com sol, fiz um bom passeio pelas palavras.

mixtu said...

ao encontro do nosso ser? caridadesª/sombras

addiragram said...

Onde mora a vontade de acordar? Num único lugar, no lugar da memória e do sonho.Naquele baú que,de certeza, não atiraste ao mar, mas esqueceste por instantes onde terás guardado a chaves...Experimenta procurá-las junto à buganvília...
Um beijo amigo para ti

addiragram said...
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addiragram said...
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mixtu said...

p.s. lindo, há post que valem pelos comments, foi isso que acabou de acontecer no meu humilde blog, gracias

Carlos Estroia said...

Em resposta:
Aceito sempre sugestões, e claro que aceito apreciações vou tomar o que disses-te em conta, sabes ando à procura dum estilo se é que isso existe.
Abraços

mixtu said...

aguardo outro post para saber de ti, se estás bem,
jinhos

deep said...

escrever no respirar condensado das janelas é sempre uma descoberta...

ivamarle said...

Minha Nossa Senhora!!!!!!!(e eu nem sou religiosa)isto é para deixar derreter lentamente no pensamento, como consegues tu descrever qual Eugénio, o âmago do vazio dos ecos perdidos, das presenças fugidias e passos quase próximos e nós longe, longe, sempre em qualquer parte que nunca é ali. E é só o que sabemos: que o caminho continua, e que é preciso percorrê-lo...