Tuesday, February 21, 2006

A Comemoração (3)

(continuação)
Deu mais um jeito aos livros na estante deixando bem destacados os mais importantes: “Estratégias de sucesso”, “Transcendências do Real”, Interpretação dos sonhos”, “Seja o seu próprio astrólogo”, “Musculação em casa”, “Dietas fáceis” e aqueles volumes encadernados do diário, a que chamou “A História”, registadas lá todas as injustiças do mundo, todas aquelas que sobre si haviam recaído. Um dia, quando fosse a altura certa, saberiam os pormenores da conspiração de que tinha sido alvo. Um dia. Mas ainda não era a altura certa, ainda não. Nesta altura, apenas mais um whisky.

Talvez o Esotérico dirigisse o olhar para aquele sítio, mal entrasse na sala. Era quem mais tinha a ver consigo. Perdiam-se em exotismos escritos à vez no teclado; eventualmente iria trazer-lhe um livro como prenda, era o que ele dizia fazer sempre que marcava encontro real com alguém de interesses afins. O Poeta entraria a declamar Pessoa, tão ao seu gosto, como fazia sempre que entrava no espaço virtual, perante discussões acesas, acalmando os ânimos nos chats.
Que diabo, lá estavam outra vez as mesmas marcas nos copos. Isso irritava-a, não conseguia descodificar os sinais, mas o pano iria pôr os cristais a brilhar mais uma vez. Antes do pano, porém, copiou-os de novo para se lembrar depois. Eram iguais aos outros que acabara de limpar no chão do terraço. Alguém lhe entrava em casa para ter o prazer de a sujar! Tinha de ir à polícia outra vez.
Estava a ficar farta de tantas contrariedades. No escritório era o mentecapto do Félix, estava certa de que era ele que liderava todo o grupo. Congeminou que iria pô-la doente. Que mal lhe fazia que estivesse sempre a ir à casa-de-banho se não havia ninguém mais metódico e organizado do que ela. Lá porque precisava de lavar constantemente as mãos, abençoadas com a água limpa, seguida do creme hidratante, cheiroso e macio, para disfarçar o cheiro da lixívia com que as desinfectava, só tinha mesmo de as lavar. Só assim se sentia bem consigo.
Porém, sorria ao lembrar os amigos que estavam para chegar. Esses eram feitos de outro barro; estes sim, valiam a pena. O Viktor37 devia ser o primeiro, sempre tão correcto e tão floreado na conversa, que homem! Punha sempre florzinhas e sorrisinhos no meio das palavras escritas. Por ele e por outros como ele é que valia a pena aquele esforço, aquele arredar das preocupações, aquela leveza no pensar.
Acabara-se a serotonina, Doutor Rocha – pensava exaltada – e a fluoxetina, e as benzodiazepinas e essas coisas que a tinham mantido atordoada todos estes anos. Acabaram-se as consultas! Acabara-se a necessidade de controlar a melatonina porque a epífise cerebral entrara em auto-regulação. Abençoado ConfidenteWeb que tantas coisas ajudou a perceber. E o SagitárioHLx, que lhe estimulara a adrenalina em licenciosas aventuras virtuais. Todos convidados para a sua comemoração.

Passava muito da hora marcada.
Mais uma vez viu-se ao espelho. Mais uma vez as marcas? Também no espelho, as marcas? Não compreendia essa perseguição, essa mania de lhe entrarem em casa para riscar chão, paredes e espelhos. Nem os copos escapavam. Tinha de limpar tudo. Tinha de limpar tudo. Tinha de limpar e voltar a limpar tudo.

Mas antes, mais um whisky para a nova mulher que continuava à espera dos melhores amigos virtuais do mundo para a comemoração da cura.

Fim

14 comments:

K. said...

Le grand finale. Let´s celebrate? ;)

Anonymous said...

Gostei de tudo o que li, suscitando-me desafios, inquietações, sentimentos que fazem de todos nós simples mortais. Vou tentar ser sucinta:)
Todos os posts têm uma ligação, por vezes ténue entre o virtual e o real. Usei pouco tempo o irc, em salas de poesia! Ando em dois ou três sites e recentemente visito blogs, mas tudo apenas numa base: ler e partilhar pela escrita.
Ao longo destes seis anos adquiri uma certeza: o que somos no real, somos aqui, no dito virtual.
Um nick representa um ser humano (que poderá travestir-se de muitos nicks), mas não deixa de o ser, portanto quem é mau, não é aqui que fica bom ou vice-versa.
Depois a falta de respeito para quem escreve, porque podemos discordar mas jamais numa baixaria!
Há o vasculhar doentio de saber a vida pessoal de cada um, fazem-se de amiguinhos, tocam a flauta e os ratos seguem a melodia! Parvos!Apercebendo-se que estão em baixo, ainda gozam e enfim...o tal espaço que n se respeita.
Já tive guerras bem acesas em sites mas não abri mão da minha verdade!
Há quem se tenha tornado dependente deste mundo e troque uma volta a pé, por horas a fio.
Tal como o teu "lamentações" concordo o povo português de Portugal:) (nasci em Angola e sou portuguesa) é um povo de lamexas, sempre preocupado com o que possam pensar dele, se vai assim ou assado, profundamente derrotista e até auto-destrutivo. Temos sempre soluções para os outros, mas p nós é bem diferente.
Precisamente a mesma postura aqui no virtual!
Os amigos são como as ondas do mar, vão e vêem...e poucos são os que ficam na areia como conchas!
Aqui há certas empatias mas de anos e porquê? não sei mas sei que se fazem amizades, namoram e até vivam juntos porque esta via foi o trampolim para uma vida real a dois.
Não espero por respostas, abraços e beijinhos. Não ando para ser bonitinha, queridinha, só bebo água e nunca preocupada com o que possam pensar sobre mim, mas uma certeza eu tenho: digo o que sinto na verdade, porque sou optimista, extrovertida e muito alegre.
Nunca vejo o perfil de quem escreve e só sei se é "o" ou "a" pelo que escrevem. Idades, não faço ideia, só sei que eu fiz 55:):)
Palavras em Linha não deixes de escrever e foi muito bom o que li, porque aprendi um pouco mais e virei ler nas minhas horas de repouso, NUMA TERAPIA e NÃO DE UMA OBRIGAÇÃO!
Os meus sinceros parabéns e com respeito o meu maior xicoração!
Agora...o que n troco por este mundo, o meu sono...vou dormir!
Boa noite e sejam felizes!

mfc said...

Pois... cada um na sua casinha e... apareceram Todos!
As marcas?! Todos as temos e vivamos com elas!

Luna said...

Tira um para mim....um Whishque!

antónio paiva said...

.....mas que comemoração, obrigado pela partilha, vivendo e aprendendo.....
Beijinho

SoNosCredita said...

"Porém, sorria ao lembrar os amigos que estavam para chegar. Esses eram feitos de outro barro; estes sim, valiam a pena."

por isso são amigos!
:)


em relação ao comentário d fatyly:

"recentemente visito blogs, mas tudo apenas numa base: ler e partilhar pela escrita."

é também com esse objectivo que escrevo e visito outros, que escrevem!

"Depois a falta de respeito para quem escreve, porque podemos discordar mas jamais numa baixaria!"

um dos meus últimos posts foi estranhamente comentado!

aproveito, junto-me a mfc:

são também ( muito) as marcas que nos distinguem!

Anonymous said...

BOM DIA!!!
...em que nos transformamos!... em pequenas claridades, fogos fatuos da imaginacao... a partilha é o mais importante!
Gostei muito do conto. Muito intenso, a ver por dentro ansiedades e esperancas...
Abracicos!

Anonymous said...

sonoscredita...li o teu comentário ao meu comentário. Como é óbvio fui ao teu blog e deparei-me com a tal situação que acho de uma cobardia incrível - o anonimato.
Parabéns pela tua resposta e nada como pôr tudo em pratos limpos.
Aqui a valentia é tremenda, mas se fossem confrontados olhos-nos-olhos outro galo cantaria!
Beijos

SoNosCredita said...

Pois, tou a ver que sim! ;)

(em relação ao "anónimo de estimação")

Anonymous said...

sonoscredita, lendo de seguida o teu comentário ao meu, realçando duas frases minhas, com respostas tuas e a "marcas" de mfc...esta

"pois, tou a ver que sim...
espaço...
em relação ao anónimo de estimação" (n sei se terá feito mais comentários porque foi a 1ª. vez que fui ao teu blog e li o post)

ou é impressão minha ou pensas que o mesmo é da minha autoria?
mas não foi, não é e nunca será "anónima" mas sim...fatyly ou Fatyly

Desculpa se estou enganada, mas há aqui algo nas entrelinhas que não bate certo!Por vezes há frases que tiradas dum contexto dão outra interpretação.

Peço desculpas a Palavras em Linha por ter colocado a minha dúvida!

Carlos Estroia said...

Prazeirosa leitura, estava à espera do final par comentar:
Os amigos virtuais, por vezes não tem marcas que custem a apagar, a esperança está sempre presente, tal como as rotinas e as psicoses, a fuga do real com base na imaginação.

Abraços

Mónica said...

confundi tudo, bom tu trazes para aqui muitos dados... acho que vou imprimir as 3 partes e ler tudo seguido...
gostei da revelação dos sinais
a psicose é igual à do howard hughs(é assim q se escreve??)!!
conheci uma mulher assim com essa mania, tinha a pele das mãos transparente, uma fina pelicula e sempre geladas!
:-))

Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

estaremos todos na antecamara da psicose? ;)
não, mas este animar, este dar-vida-a figuras virtuais, a fidelização a projecções, faz-nos mergulhar no domínio do pensamento mágico.

e substituimos santinhos por avatares, oh yes! :))

Elipse said...

boa leitura a que fizeste, diva.
estava a ver que tinha sido excessivamente hermética!