Thursday, January 05, 2006

O problema do começo (2)


(continuação)
Normalmente abomino a chuva. Mas também me desgostam os dias de calor excessivo, fico como que abalroada nos gestos, sem acção para me movimentar e nem as páginas de um livro me devolvem a paciência. Estava à mercê da água, naquela manhã invernosa, dissolvendo-me numa sensação incómoda de cansaço. Tinha estado a ler contos até muito tarde: histórias de mar, umas com sinais premonitórios de tragédias sob ventos e tempestades; outras relatando ousadias sobre a ordem cósmica seguidas de imersões nos abismos. Antes mesmo de adormecer deixara que as palavras me mostrassem o corpo do capitão pirata a afundar-se em silêncio, os dois homens cuspindo para as mãos e continuando a remar. Premonição de chuva, tanto mar pela noite dentro e personagens de mãos gretadas.

Olhei para o canto da sala: sentada, muito direita, de mãos serenamente pousadas sobre a mesa, uma cara enrugada parecia estar à espera. Não sei se tinha já comido ou se aguardava o empregado, se esperava o fim da chuva ou se apenas que o tempo continuasse a passar. Havia nela qualquer coisa que se assemelhava à imobilidade de uma pedra. Senti uma estranheza, uma impressão de esgotamento das palavras. E, no entanto, ela poderia representar todas as variantes e alternativas, todos os acontecimentos contidos no espaço e no tempo. Como se a sua presença cristalizasse a singularidade ordenada da matéria. Mas sem palavras.

Há, de facto, personagens ideais para contos. A Lurdinhas servia alguns modelos, ideal no melodrama ou nos desfechos imprevisíveis. Podia pedir-me para a ajudar numa congeminação maquiavélica, a morte do Cláudio André ou, quem sabe, um suicídio no Tejo, de cima da ponte, acabando-se tudo num mergulho mediático. Rui Belchior também podia servir. O outro pusera-lhe ironia no nome, quando o chamava a ouvir atentamente a ideia da empresa de emoções; pelo menos foi o que me pareceu quando lhe ouvi a gargalhada. De facto o nome não lhe assentava bem, não condizia com a finura do rosto, barbeado e hidratado e muito menos com os dedos esguios que podiam dizer-se de um Mendonça ou de um Menezes. Belchior devia incomodá-lo, como uma unha encravada, um espinho que se tivesse alojado entre a carne e a pele, produzindo uma secreção purulenta.

E, pensando bem, que fazia ali um tal indivíduo, a não ser desempenhar o meu próprio papel de registadora das histórias alheias.

Por outro lado, tinha também o pormenor da ira do gerente perante a minha ausência, agravada por um problema complicado que só eu podia resolver. Um homem gordo de faces congestionadas, cabelo muito farto e teimoso e uma dose incontida de mau génio sempre pronto a surgir por debaixo dos pêlos rebeldes das sobrancelhas. A ira de um gerente numa manhã de chuva daria um bom começo para um conto.

Risquei a ira e sublinhei a chuva. Parei, olhei para o ar, mordisquei o plástico da esferográfica. Estava farta de fumo e guarda-chuvas a pingar.
(continua)

10 comments:

mfc said...

O tédio acaba sempre por nos assaltar nestas situações...continua a bem montada mistura de pensamentos e atenções/desatenções entrecortadas.

Claudia Sousa Dias said...

E o teu livro de contos quando é que sai?


CSD

Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

ando a seguir esta novela com atenção. tão bem escrita. vemos o café e os personagens (posso imaginar a Lurdinhas). aonde nos vais levar?

Mónica said...

melhor o calor

armando s. sousa said...

Menina,
O que anda a fazer pelos blogues, quando apresenta textos com esta qualidade.
Não é tempo de pensar, em fazer vôos mais altos?
Eu compraria o resto do texto em papel!
Um abraço, Palavrinhas!

Mac Adame said...

Calma, Armando Ésse, calma... "O meu pipi" também começou pelos blogues e hoje deve estar cheiinho de dinheiro por causa do livro.

mixtu said...

eu gosto da chuva, mas gosto mais quando está só a morrinhar...
saludos

joaninha said...

Enquanto deixei os olhos correr ansiosos as linhas destes textos, fui permitindo que a imaginação me levasse aos locais exactos, podendo assim partilhar de toda vivência dos quadros. Senti-me tão envolvida, que nem reparei que estava a escrever em teclas e peguei na lapiseira e levei-a à boca…

Está realmente muito bom! Vamos a livro? Para quando? Quero 1 com autógrafo.

Espero ansiosa a página seguinte. Um beijo

jp(JoanaPestana) said...

A morder a esferográfica?
Estou com o Piratão, que falta de classe, menina.
;-)

Carlos Azevedo said...

já me vejo na vernissage ... a roer-me de inveja e a beber M&C !:)

(garanto que ainda não tinha visto isto quando escrevi sobre os piratas e os fantasmas)