Wednesday, January 04, 2006

O problema do começo (1)

Quando me telefonou com a urgência do encontro – tinha de ser para dali a meia hora, no máximo – já nem me dei ao trabalho de imaginar a situação. Disse ao gerente que descontasse uma manhã às minhas férias, tão longínquas sob a constância de uma chuva miudinha que inutilizava as duas horas gastas no cabeleireiro, e meti-me no carro.
Ela já tinha pedido o meu café, sentada numa confusão de fumo de cigarros e gabardinas transpiradas. Da última vez era a consciência a derramar lágrimas, depois de uma noite de vingança programada para um hotel de Sesimbra, precisando a voz de gastar-se em justificações e pedidos de legitimação do acto. Mas antes tinha sido a descoberta dramática de que o Cláudio André a enganava, tudo contado com pormenores e ameaças de suicídio, depois de outra vez em que me pedira dinheiro urgente para as obras da cozinha. Vinte minutos depois ainda a Lurdinhas contava, detalhadamente, histórias que me escapavam ao entendimento. Tinha de lhe dizer qualquer coisa; reparava agora que estava muito branca, as olheiras muito dramáticas e o guincho de um choro magro a incomodar-me a concentração.

Na mesa ao lado a gravata de riscas enquadrava-se bem na camisa monogramada e o tom de voz era convincente na argumentação, embora viesse do interlocutor e eu não o visse. O da gravata dizia que sim, que sim, e o outro assegurava que o projecto era arrojado mas garantido. Compravam um barco, talvez dois, contratavam dois ou três marinheiros experientes para não se correrem riscos desnecessários, davam jantar a três ou quatro sem-abrigo, desses que quanto mais sujos melhor, faziam uma preparação intensiva dos indivíduos, uma ou duas semanas de formação, que os fundos previam-na, e ele próprio faria de capelão, ou missionário, esses pormenores ficavam para depois. O da gravata agitava-se na cadeira; avisava, pelo telemóvel, que ia chegar um pouco mais tarde, bem se via, com a manhã chuvosa o trânsito estava impossível; e começava a incomodar-se com a curiosidade que eu devo ter posto na forma como lhes escutava as palavras. O outro entusiasmava-se, antecipando naufrágios simulados no Tejo, que as pessoas já não sabiam como preencher certos vazios e a empresa de emoções iria ter muito sucesso. O da gravata desencarcerou-se da camisa, aliviando o botão que o fazia transpirar e ficou mais atento. O outro continuava a expor-lhe os seus propósitos.

Não sei porquê, veio-me à ideia a travessia do Canal da Mancha antecedida da aproximação ao porto de Calais, em estradas de casario antigo, em cujas paredes se viam marcas das balas de há meio século. Tínhamos combinado fazer os registos dos pormenores, como um diário de bordo, para que um dia a memória não nos traísse. Ficaria tudo escrito e é por isso que me lembro que a viagem se iniciou com sol e um vento cortante. Há uma fotografia em que estou a agarrar o lenço cor-de-rosa para que ele não se solte do pescoço. Lembro-me também que abandonei a ideia da escrita a meio da viagem, quando o nevoeiro envolveu o barco e só se viam janelas salpicadas. Foi nessa altura que os bardos vieram, bailando em carrocel, aliviando-me da rugosidade de umas quantas palavras naufragadas. Enquanto jogávamos às cartas para ajudar a passar o tempo, um deles surgia das brumas, puxava-me para a montada do cavalo e desaparecíamos no ar, já o Francisco me dizia que não me distraísse, que era a minha vez de jogar.

Dei comigo a fazer um exercício de racionalidade – a Lurdinhas chorava, o parceiro do da gravata propunha aventuras no Tejo e a minha memória levava-me para a travessia do Canal da Mancha – e a concluir que só podia ser por causa da chuva.
(continua)

5 comments:

mfc said...

Um cruzamento de registos; um estar atenta ao que se passava em volta, já que a conversa, de conhecida,não necessitava de mais que um "pois" de quando em vez... entremeada por memórias. Sempre as memórias.

Maria Heli said...

mais saudades, ainda, depois de te ler.
mandarei, mail, em breve. a contar tudo.
bjos, muitos

peciscas said...

Vê-se que estás atenta ao que te rodeia. E, depois, sabes pôr em palavras, aquilo que captas dessa realidade.
Ficamos à espera da continuação.

Mac Adame said...

Está bem escrito. Mas já que continua, comento no fim.

J25 said...

tou ansioso pela continuação... :)