Sunday, January 08, 2006

O problema do começo (3)

(continuação)
Saí do café com a sensação de ter estado aprisionada em histórias e precisei de andar um pouco a pé. Tentei não olhar para ninguém, embora o movimento, nas ruas de uma cidade, seja normalmente cruzado; raramente duas pessoas se dirigem para o mesmo sítio ou, se se dirigem, os propósitos afastam-nas do eixo comum. Quanto a mim não queria dirigir-me para lugar nenhum; precisava apenas de desbastar uma quantidade de condicionalismos que estavam a cortar-me os diálogos e criar pormenores que não fossem simples fragmentos ou rumores de factos sem importância.

E enquanto divagava sobre a importância das coisas visualizei a grande mesa de carvalho onde todos tínhamos pousado as mãos: dezoito pares de mãos em atitude de espera, cada uma delas querendo esconder das outras os projectos feitos para o uso do dinheiro que viria a ser distribuído após a celebração da escritura de venda do terreno sob o qual deveríamos deixar enterrada a discórdia dos últimos anos. À medida que a voz profissional da notária reproduzia nomes e valores as mãos agitavam-se: uma tirava o anel e voltava a pô-lo no dedo da outra, duas mãos pequeninas apertavam-se, encaixando-se, enquanto outra pressionava o par fazendo estalar os dedos, um a um. Em algumas já se impacientavam as canetas aguardando o momento de derramar a tinta sobre a verdade material do papel timbrado. Penso que vi também uma mão precocemente aberta e outra imperturbável face à comparticipação nos rendimentos patrimoniais ali pronunciados.

E houve um momento em que me cruzei, na minha marcha, com uma mão que se acercava para depositar na minha, involuntariamente disponível, um papel que comecei a ler, distraída: “Já fizeste parapente, asa delta, escalada…”. Eu ia subindo a rua sem direcção precisa, distraindo-me em duas ou três frases que não retive e detendo-me finalmente no apelo “…vem ter connosco e viverás a experiência mais louca nas águas do Tejo”. Reparei no título “Emoções Fortes” e, já no escritório, quando a urgência de um encontro veio pelo telefone – tinha de ser para dali a meia hora, no máximo – disse ao gerente que descontasse uma manhã às minhas férias e apressei-me para o café onde a Lurdinhas me esperava, levando na mão o prospecto para lhe dar.

FIM

6 comments:

mfc said...

O retorno ao princípio num conto cheio de flash backs e em que a Lurdinhas passa a personagem acessória,para que as memórias desfilem.
O problema do começo ou do fim?

peciscas said...

Como bem diz o Manel, eis um texto que envolve o leitor numa sinuosidade de emoções e que, mesmo quando surge a palavra fim, nos continua a deixar em suspenso, como se nos ocultassem desfechos que se adivinham.

Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

claro, tinhas que nos levar ao começo.:) mas surpreendeste-me. acho que queria que continuasses.

bj

Ivar C said...

só para dizer que gosto deste problema do começo. :)

armando s. sousa said...

Gostei muitíssimo desta "desconstrucção" da estória.
Excepcional!
Um abraço.

Anonymous said...

Fizeste-me lembrar o dragão de uma das edições d"o Alquimista" do paulo Coelho, e os dizeres da "Tábua Esmeralda"... Gostei muito! Beijos