Thursday, December 29, 2005

Anúncio de Janeiro com Primavera ainda adormecida

Eu dizia:
“Nenhuma brisa é triste”,
e procurava água, lábios,
um corpo
onde a solidão fosse impossível.*


Eu dizia que todos os ventos vêm carregados de tristeza. E que os silêncios pesam quando os ventos acalmam, fazendo sentir a distância a que estamos dos lábios ou do corpo. Ou apenas da música cativa nos dedos, quando os dedos acariciam. Ou ainda e tão só a distância que construímos para fugirmos de nós próprios e tornarmos possível a solidão.

Mas quem sabe dessa música
cativa nos meus dedos?
E depois, como guardar um beijo
mar doirado ou sombra
desolada?*

E dizia ainda de um beijo saudoso em tempo de festas ou de memórias acesas pelas iluminações que encantam almas outras que não esta, saudosa e inquieta, a guardar beijos como quem guarda folhas secas dentro de uma gaveta.

Recordava um rio
álamos
o sabor da chuva,
tropeçava em lágrimas e soluços
e lágrimas, e procurava.*

E digo ainda que o sabor da chuva tropeça também nas preces soluçadas, persistentes na procura dos álamos guardados em folhas-memórias, ainda frescas, ou em palavras-lágrimas que afectam a memória dos afectos.

Como quem se despe
para amar a madrugada nas areias,
eu dizia: “Nenhuma brisa é triste,
triste”, e procurava.

E procurava.*

Digo-o, ainda, como se me despisse para depois procurar uma brisa de sabor novo e me vestir com ela.


* Eugénio de Andrade - Ah, falemos da brisa

10 comments:

mfc said...

A permanente procura para nos encontrarmos, só que muitas vezes somos nós que nos escondemos!

Anonymous said...

Este "mix" está divinal. Eu nem sei onde me levam estas palavras quando as leio. Que dom maravilhoso que possuis, Palavras!

Beijinhos e um excelente 2006!

addiragram said...

É preciso Escutar a brisa para que a Primavera possa despertar da ponta dos dedos...

Eridanus said...

mas... porquê a venda sobre os olhos?

Elipse said...

Andamos quase sempre a esconder-nos de nós... ou é na primavera que nos descobrimos...

Eridanus said...

Este, agora, é um comentário grande, mas acho que se aplica (vem dos meus estudos de Ética, e pertence a Carlos Díaz, in Adela Cortina "10 Palavras-Chave em Ética":

«Além disso, quem não descobre em si mesmo mil e uma deficiências, carências de alguém ou de outro sinal? Porventura não sentimos em nós campos obscuros, fracturas interiores, dissimetrias, desequilíbrios mais ou menos duradoiros? Somos, nós próprios, tudo e totalmente racionalidade comunicativa? Certamente que não. E no entanto, devido a essas imperfeições podemos aproximar-nos do outro em busca de apoio como autênticos pobres, pois que faz o pobre senão pedir? Este pedir ao outro, enfim, não somente me aproxima dele, como me leva a descobrir naqueles campos da minha personalidade nos quais sou mais rico, que eu também posso ajudar àquele que... mais pobre que eu (e há sempre mais pobres que eu, embora em certas ocasiões não pareça!)... me pede.
Porém, estamos educados para a relação triunfal, não para a relação peditória; é difícil pedir, recusamo-nos a fazê-lo, apesar de que, conforme nos relembra a psicologia profunda, passamos quase toda a nossa vida lançando ocultos pedidos de auxílio com a esperança de que o outro capte o nosso pedido... Não parece, finalmente, que tenhamos vindo daquele sol ardente da ágora ática onde os gregos fundavam comunidades e se relacionavam por meio da palavra.
Mas relacionar-se não consiste apenas em pedir; consiste também em dar, em oferecer, acto extremamente gratificante até ao ponto de que a melhor lisonja que se podia fazer a uma pessoa humana seria defini-la como uma dádiva, isto é, como uma graça; no fundo, o dom e igualmente o perdão são actos de vinculação, ritos de aprendizagem relacional: vêm da relação e para ela se dirigem».


Entretanto, o tempo é de Inverno: tempo para proteger o fogo e para não espalhar brasas... :)

Luis Oliveira said...

Cachopa

Para ti os meus votos de Boas Entradas em 2006.
Bjs

Claudia Sousa Dias said...

Ah!
O que eu não daria hoje por um beijo com sabor a chuva...!

Um abraço querida amiga e uma excelente entrada em 2206!

CSD

Ivo Cação said...

Olha Palavrinhas, os meus problemas, esta febre que me assola e que me dificulta a vida, que sinto reflectida, com dúvidas e certezas, na doçura dos teus textos, e na rugosidade de algumas palavras, são os problemas que eu quero ter e que eu amo. Eu, esta coisa que eu digo sobre mim como sendo eu, tenho a marca tanto daquilo que dói como do que dá prazer. Gosto do Homem como ser só no universo, decisor do seu próprio destino, isento de impostos divinos e capaz, por isso, de olhar para a distância sem o peso excessivo da falha. Porque haveríamos de ser perfeitos? Porquê este receio do desequilíbrio e do acaso? Há sempre a hipótese de a seguir ao inverno vir a primavera. Mas nem isso é certo. Ser livre é não pedir a primavera a ninguém e ser também capaz de não a impor. Obrigado pelo fluido das tuas palavras.

peciscas said...

As previsões mais certeiras para 2006 estão no Peciscas.