Sunday, December 25, 2005

Por que é que o natal me lembra Fernando Pessoa?

Passada a noite veio a chuva miudinha. E o nada fazer.
Aborrecem-me estes dias de acordar morno depois de noites preenchidas por iluminações fantásticas na alma alheia, roupa lavada a vestir vazios tão grandes como os meus. E começa o fingimento, porque vazio é palavra de mentira solta.

Dizem que finjo ou minto tudo o que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto com a imaginação. Não uso o coração.*

E também me aborrece pedir clemência em preces. E em tudo finjo a começar por isto.
Digo que o silêncio pesa. Mas não apetece mais do que estar triste. E dizê-lo.

Tudo o que sonho ou passo, o que me falha ou finda, é como que um terraço sobre outra coisa ainda.*

Digo que a distância magoa. Mas estar longe permite dizer também a mágoa de estar longe. E é um gosto sentir doer para se implorar à razão que venha com a chuva, numa persistência miudinha e cumpridora. E dizê-lo. Ou pedir à explicação que ajude a perceber o que podia ser explicável se fosse razoável. Pedir sem convicção, fingindo ainda.

Por isso escrevo em meio do que não está de pé, livre do meu enleio, sério do que não é. Sentir! Sinta quem lê! *

* Fernando Pessoa - Isto



15 comments:

Zumbido said...

A mim, o Natal não me lembra nada, nem bem nem mal. Um dia como os outros que às vezes tem a virtude de ser menos um dia de trabalho e desta vez nem isso. Não sonho com os brinquedos que a infância trouxe mas também não lembro aqueles que faltaram, porque nada havia então que preenchesse o desejo.
O Natal não é só sempre que um homem quiser, é também aquilo que um homem quer que seja.
De facto, também não me incomoda que outros estejam, pareçam ou finjam que estão felizes. Provavelmente é necessário olhar para um pouco mais longe que a janela do nosso quarto para sentir a falta de sentido que o universo tem. Mas, depois de descobrir a falta de sentido que tudo isto tem, para quê fingir? O próprio universo sorri a fingir que existe. Acima de tudo, mesmo de Deus, está a ironia.

Toze said...

Gostava que as pessoas se comportassem todo o Ano, como se comportam no Natal, mas enfim...

Toze said...

Palavras em Linha: Os textos e a Imagem já foram postados nos dois blogues :)

Obrigado
Beijos e Abraços

mfc said...

O Natal pouco me diz...antes! Mas depois esqueço-me rapidamente e acabo por entrar na festa.
Um texto sofrido, onde o fingimento apenas faz sobressair a dor.

peciscas said...

Este, amiga, é um texto íntimo e sentido.
Estas épocas simbólicas, por mais que a gente se alheie delas, deixam sempre marcas.
A mim, trazem-me, sobretudo, evocações, às vezes um tanto pesadas.
Como aquela que deixei, há breves dias, lá no meu espaço.

Lúcia said...

eu até gostava do Natal. Mas deixei de gostar no dia em que deixei de o passar com a minha família. O que era calor humano, passou a uma noite e um dia frios e sem significado. o que vai valendo, ainda, é a alegria das crianças. como o "Natal é quando o Homem quiser", para mim é no dia 31 de Dezembro. Aí sim, é o Natal que recordo, feito de Calor, Alegria e Harmonia.

Eridanus said...

Mas,

«Se um tal, eterno, houve um dia, porque é que nós desconfiamos ainda do terrestre?
em vez de no transitório seriamente
apreender os sentimentos de qualquer inclinação, futura no espaço?»

... do Natal, ou dos poetas que o cantam... nos recordo

(Rilke, in "A Hölderlin")

J25 said...

Olha eu adoro o Natal, com todos os presentes para desembrulhar as caras surpreendidas, as palavras em torno de uma mesa farta, com enfeites natalícios como background... simplesmente adoro!

Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

Conheces o poema "Natal" do Fernando Pessoa? Se não conheceres, envio-te. Tenho medo do último verso. (mas é claro que eu ando assim pró fragilzinho estes últimos tempos..., mas agora que sei que não é menopausa precoce, vou ficar melhor LOL)

Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

O tal poema de Fernando Pessoa:

Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
'Stou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!

Elipse said...

A época não nos ajuda, mrf.
Mas não façamos o culto da tristeza. Deixemos apenas passar os dias.

Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

Minha querrida, já passaram :)

Olhos postos na terra, tu virás
no ritmo da própria Primavera,
e como as flores e os animais
abrirás nas mãos de quem te espera.
(este é do Eugenio de Andrade)

Elipse said...

Lindo!
A seguir escreverei um texto nesse registo.

addiragram said...

Perseguimos o Absoluto que não deixamos de querer encontrar em cada instante (e o Natal é um desses Instantes).Depois sentimos com uma cruel lucidez como as coisas não estão nos lugares, paradas, à espera de nos encontrarem.É esse, para mim, o fingimento, o vazio destes tempos e destes lugares. Estar do lado de lá é ter conseguido, por instantes,a alegria de não pensar e de poder viver.
Para além destes meus "apartes" um apreço mto grande pelo que escreves que, ao contrário de Pessoa,parece ser capaz de transportar o coração.

Rosario Andrade said...

Queridas Palavras Doces!

... que o Novo Ano seja repleto de realizações e de alegrias! ...E já agora de muita blogamizade!!!!!!!!

Abracicos!