Friday, November 25, 2005

Um quarto nas águas-furtadas

Vou contar-te como a mulher dele me disse para ir embora, que a casinha era pequena e eu estava a dar despesa. Levei apenas um saco na mão e pedi à madame para me arranjar um quartinho nas águas furtadas do restaurante, onde havia um colchão e pouco mais, já não me lembro do que havia, mas sei que o partilhava com a enteada da patroa, atendíamos ambas à mesa, no rés-do-chão e ela um dia foi apanhada a comer sopa às escondidas. Nesse dia, a madame trouxe a panela da sopa para o quarto e, ali à minha frente, falando na soupe, que eu não percebia mais do que isso, obrigou a moça a comer tudo, tudo, que nem as lágrimas serviram para nada, as dela e as minhas, abraçadas depois na desgraça de um quartinho numas águas furtadas, acordando na manhã seguinte para mais um dia de trabalho.
Mas não morri, não, que uma mulher arranja sempre forças e eu tinha de cumprir a minha pena. Não podia andar sempre no coiffeur a entufar o cabelo, mas dava um jeito às minhas farripas escassas e aparecia sempre com bom aspecto aos clientes, mademoiselle, comment ça va?, e eu a aprender palavras novas e a rir-me para todos, chamando a mim a alegria de viver de novo ou enganando-me com ela, já não sei dizer-te.
Hoje, à distância do tempo, penso que os dias passavam e eu seguia com eles, mas não consigo dizer se me movia a petite bourse onde juntava os francos, um a um, a imagem do meu filho a entrar no carro do pai e a encarar-me como se eu fosse um fantasma pálido, ou o brilho dos meus olhos grandes, muito pretos, cujo contorno eu continuava a acentuar com o eyeliner, que se dizia crayon e atraía os homens que vinham comer au restaurant.
La portugaise, diziam os clientes. Era o que eles diziam e gostavam que fosse eu a atendê-los, sorridente, embora à noite, no quartinho acanhado das águas furtadas, não tivesse já lágrimas para chorar aquela qualquer coisa tão vazia, tão vazia, que eu não sabia se eram saudades ou se era a morte a chamar por mim. E continuava a sorrir, para as afastar a ambas.

7 comments:

mfc said...

O retrato humanizado de alguém que longe luta e sofre, tal como sofrem os que para lá não foram, mas que nem a saudade sentem, porque ainda cá estão!

Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

vi uma reportagem sobre os ocupantes de (quartos alugados em) águas-furtadas nas grandes avenidas de Paris. Nunca imaginei que naquelas elegantes avenidas os telhados albergassem os mais pobres e excluidos dos pobres: muitos imigrantes, "sem papéis", às vezes 4 ou 5, ou familias inteiras no mesmo quarto mínimo, sem aquecimento, uma casa de banho comum no fundo do corredor...

este teu fragmento (de um conto?) levou-me a essa realidade. exilados, explorados, prisioneiros no país que escolheram para trabalhar, muitos não têm sequer dinheiro para regressar.


PS: a desgarrada continua, parceira! :)

stela said...

o que aqui relatas, "tocou-me" bastante. O outro lado dos que lá estão, que quando regressam em férias, todos dizem "...aquele é que fez bem... olha para a vida que ele tem...". Não fazem ideia dos sacríficios, incluindo saudades e solidão, que muitos dos imigrantes passam.
Beijos

lampejo said...

Quanto a sensibilidade nos toca, toca-nos também a tristeza dos outros...

Mónica said...

e o final da história?

Maria Heli said...

úm quarto nas águas-furtadas: sempre sonhei ter um.

este fez-me sonhar.

bjo, linda.

Claudia Sousa Dias said...

Descreves-me a SAUDADE e a SOLIDÃO no frio de uma água furtada...

CSD