Lembro-me de ti quando trepavas a laranjeira, no quintal da casa da avó, para alcançar, lá do alto, a aproximação dos inimigos que irias derrubar com a tua espingarda de madeira “pum”, “pum”. Sem vinganças, sem maldades, apenas traquinices de uma infância feliz, espraiadas ali no quintal, como se fosse numa selva ou numa floresta, porque no apartamento o espaço não chegava para a imaginação, penso eu agora, depois de ter tido filhos e de ter percebido que os espaços fechados das casas empilhadas umas sobre as outras os impede de verem as estrelas à noite, tanta luz à volta dentro das cidades e armas de guerra nos cestos de brinquedos, de todas as formas e feitios, com luzes e sons, sem ser preciso fazer “pum”, “pum”.
Os anos passavam e eu perguntava-me, sempre que colhia as laranjas ou as apanhava do chão, grandes, maduras, vivas, onde estarias e como seria a tua vida. Via ainda a espingarda de madeira nas tuas mãos brincalhonas, mas já procurava o teu nome nas listas dos alunos que frequentavam a minha escola, sabendo que os anos nos teriam mudado as feições de miúdos e que não seria possível reconhecermo-nos se nos cruzássemos na rua. As turmas eram só femininas ou só masculinas lembras-te?, mas naquele dia em que o senhor ministro visitou a escola e nos enfileiraram no corredor, de bandeirinha na mão, menina ao lado de menino e menino ao lado de menina, a comitiva toda a passar e nós compenetrados na nossa missão de infantes da Pátria, quase como os militares que desfilavam antes de embarcarem rumo às Áfricas, como a televisão mostrava, fazendo chorar a minha mãe, naquele dia eu procurei-te com os olhos, pensando sempre que podia ser possível descobrir-te. E dar-te as ler as cartas vindas de França.
Post -9
5 months ago
11 comments:
amanhã venho ler este texto com calma. hoje, deixo-te só a mensagem: pois sim, há desgarrada! :)
beijuuuuu
...árvores, laranjas e espingardas de pau, e eu a lembrar-me dos barcos do cheiro dos gasóleos das algas e do gritar dos pássaros.
Vá lá tentar perceber estas associações.
Beijo
Sempre gostei das memórias dos outros, talvez por não ter muitas...
Adorei!
Beijos
As laranjeiras eram o meu esconderijo preferido... eram as que tinham a copa mais fechada!
A melancolia de vez em quando assalta-me, mas sorrio para ela!
Tinha uma em casa da minha avó onde eu me deitava a ouvir os melros em cima de uma manta sobre um colchão de fetos. o perfume a rosmaninho pairava no ar juntamente com o monótono zumbido das abelhas numa tarde de preguiça...
Beijinhos
CSD
A 1ª ilustração da "desgarrada"já chegou. As próximas...o tempo o dirá.
Há sempre um tempo perdido dentro de cada um de nós.Se o conhecemos ele não nos surpreede
Palavras,
... tão liquidas e calidas as memorias! assim como um orvalho à superfície daquilo que somos. A dar-lhe brilho.
Adorei.
Abracicos!
Parabéns pelo lindíssimo poema que passa hoje no Aguarelas de Turner.
É de uma coragem tocante!
mas queria que continuasses esta memória. o que diziam as cartas?
fiquei enleada nestes rigorosos enleios teus.
somos, como dizes, irmãs nas cartas e não só, digo eu.
soube-me a pouco, mas soube-me muito bem, este teu texto.
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