Monday, November 28, 2005

Desgarrada


Tudo começou quando a Addiragram, no Aguarelas de Turner, ofereceu esta gravura ao poeta desconhecido que há em cada um de nós, a propósito do Escritor Famoso.



1. Primeiro foi ela :


I
Em dias assim envolvida neste choro do tempo
ouso sair
Que são tantas as lágrimas que as minhas se perdem

II
que ramos quebrados são esses
que força usámos para nos perdermos

Chicotes de vento
Chicotes de tempo

III
atravessa o vidro, trespassa a árvore
desventra a nuvem e a neblina
percorre a casa que é um fantasma
e o meu olhar não encontra nada.


2. Depois eu...

I
Em dias assim
Seco as lágrimas nos cantos da boca

E risco a face de arco-íris sem vento;

II
Depois trago para dentro o olhar,
Ponho ramos secos no centro das mágoas
E neles prendo flores viçosas;

III
Ganho o dia,
Ganho tempo;
Amaino o bater dos chicotes nas memórias
E sento-me na calma das palavras.


3. E ela aceitou a desgarrada, dizendo que ía continuar no registo à "Madalena":

Em dias assim
o vento rasga os arco-íris

que nascem nos meus olhos

Mas se acaso algum escapa
e desce à foz que são meus lábios
sinto que o tempo o congela
e nem a mão o afaga

e não há mão que me afague
nem manto que me dê asas
nem fogueira que me aqueça
até que esta mágoa passe

Arcos-lágrima que perduram
por sobre sóis e palavras
espelham tua íris negra
despojada de ternura.

4. E eu, de novo...

E não há mão que me afague
Sem conhecer os meus beijos
Nem afago que resista
Ao arco-iris que ponho
No braseiro dos desejos;
Nem manto que me dê asas
Porque cavalgo com o vento

Porque aproveito os despojos
E não deixo o pensamento
Rasgar a luz dos meus olhos;
Não há mal que me destrua
Nem fogueira que me queime
Quando amanheço na foz
Porque o tempo é meu amigo
E traz-me sempre no vento
Luas novas, sóis diferentes
Iluminando-me a Vida
Até que esta mágoa passe.


5. E pois, agora eu, disse ela de novo:

em dias assim
olho os girassóis na tela
meus olhos que seguem os teus
olhos que levam os meus pela trela

em dias assim
abafo as fogueiras
minhas mãos que querem apenas arder nas tuas
mãos que se fecham n' algibeira

em dias assim
escondo-me neste manto
meu corpo marcado pelo espanto do teu
corpo animal de puro sangue


espasmos, danças, achas, cheias
que em dias assim
rodopiam nos meus olhos como areia.


6. E eu tinha de responder...

Em dias assim
Ponho girassóis nos olhos
E sopro, no som dos búzios,
O apelo do meu corpo;

Sigo depois em dança
Tacteando a neblina;

Em dias assim
Fecho a noite à beira das marés
E componho a minha dança
Na caligrafia das ondas;

Solto os sentidos
Rasgo-te a pele
Soltam-se os gritos
...
Sente-se a calma;

Nesse instante acordo o espanto
E sento-me, descalça, no areal.


7. E a desgarrada parece ter-se transformado em maratona, disse a Diva:

Descalça no areal
parei para sentir a noite
esse instante em que o vento é mais nu

o teu corpo fica frio de vento
os odores caiem c'os açoites do ar
esse instante em que a palavra é mais crua

os olhos erguem-se para a palavra o céu desce até nós
tocam-me as luzes que tremem

e nesse instante quebras um búzio
e suspiras adeus.

8. Depois veio a maria e meteu-se aqui no meio...

descalça no areal
parei para sentir a noite,
grávida de sonhos
que a mão da consciência
sente pontapear

naquele instante
em que suspiraste adeus
vi que na ampulheta dos teus beijos
se media o meu tempo

e levito no vácuo da espera
ansiando que um búzio qualquer
te sussurre “vem”na minha voz de mar.


15 comments:

Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

o que era desgarrada está a virar maratona :))

e os cavalos também se abatem... mas acho que ainda vou retaliar... ;)

Hipatia said...

E eu vou lendo descansada :)))

Toze said...

Vocês estão imparáveis...ainda bem :))))

Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

ei-lo... (até que a voz nos doa? :))

assim:

Descalça no areal
parei para sentir a noite
esse instante em que o vento é mais nu

o teu corpo fica frio de vento
os odores caiem c'os açoites do ar
esse instante em que a palavra é mais crua

os olhos erguem-se para a palavra
o céu desce até nós
tocam-me as luzes que tremem

e nesse instante quebras um búzio
e suspiras adeus

Anonymous said...

Viva!

E eu, sentindo-me pequenina ao lado das vossas maravilhosas palavras, não deixo de me sentir inspirada com elas e lá me meti também ao barulho. Caramba! As vossas palavras até se respirarm!
Um bejo grande!

isabel mendes ferreira said...

"em blogs assim...o espanto é...real".bjo.

jp(JoanaPestana) said...

Estou como a hipatia,relaxada no sofá vou lendo :-)

Lúcia said...

como as palavras fluem com estas duas meninas. está simplesmente fenomenal.

Claudia Sousa Dias said...

Eu também!

Este é um dueto de peso!

Só me resta ler e observar!

beijos da CSD

Claudia Sousa Dias said...

Eu também!

Este é um dueto de peso!

Só me resta ler e observar!

beijos da CSD

ivamarle said...

Já agora se me permitem
também passo a versejar,
embora vocês fiquem
enjoados com meu fraco rimar.
Na penumbra dos sentidos
Vou afagando as memórias,
Pelo meio esboçando sorrisos,
Ao recordar as vitórias.

Nem tudo foi o que pareceu
Ou todos os remorsos sentidos
Simplesmente: aconteceu
Nem sempre pelos melhores motivos...

Eu nem queria fazer versos
Chamam-lhe poesia menor,
Mas nestes momentos adversos
Sai-me assim, quase de cor...

Por vezes ao recordar o passado
Ele foge de mim, vai tão distante
Que por mais que tivesse acelerado,
Ele sempre atrás, e eu adiante...

E para diante é o caminho
Dizem as gentes do povo,
Acompanhado ou sózinho,
À nossa frente é tudo novo!

Que versejar tão “fatela”
Dirão vocês :” está em crise!
A loucura tomou conta dela,
Tadita da Ivete Marise”...


beijocas

mfc said...

E ficavamos aqui até amanhã deliciados!
Que coisa bonita... e lindamente escrita!
Quem sabe, não desaprende.

addiragram said...

Só me resta continuar a ilustrar porque versejar não me atrevo...

Logo que possa faço o resto e, se possível sem gralhas,filhas do cansaço da noite e do desejo de até vós chegar.
Talvez pudesses acrescentar a foto que inspirou a desgarrada. Ficava lá o mote e os reflexos do meu olhar.

Bastet said...

Tomei a areia nos braços,
e o mar sentia-o no ventre,
sorvendo as lágrimas de sal
com as ondas do meu desalento.
Traguei a vida num sopro,
até à banalidade da morte,
fiz de pouco a minha sorte
e do amor amuleto...
Despi-me de roupas e credos,
vesti-me do verso, de errado,
não fosse o destino ofertar-me
o teu corpo por presente...
Que mais fiz que não faria?
Que vagas rebentaram cá dentro,
quando nua me vi deitada
ardendo de fogo e tremendo...
Troquei seixos por promessas,
rezei, chorei e pedi
que a espuma da maré vaza
te trouxesse de novo até mim.
Cinji a cintura de algas,
cobri o rosto de véus
quando na praia te vi as pegadas
e te senti os braços nos meus...
Das febres, das seivas, dos gestos
dos risos, gemidos, odores,
calou a noite o segredo
guardou o mar os sabores...

Bastet said...

Espero que me perdoem a intromissão... Cheguei cá "via" o meu amigo Zumbido, Sísifo, Ikivuku, Lino, Ivo Cação? Sei lá!!! :)