“Impelido por outra situação talvez Einstein tivesse fuzilado gente em vez de descobrir tempos físicos e astrofísicos. Os carrascos de Auschwitz poderiam ter estado perto de uma importante descoberta no domínio da Bioquímica, e a prova é que se haviam interessado tão vivamente pela decomposição dos corpos. Assim a ciência e o crime poderiam ter entre si apenas uns passos de dança ou umas flexões de ginástica. Entre o bem e o mal uma mortalha de papel de seda.”
Lídia Jorge, A Costa dos Murmúrios
Lídia Jorge, A Costa dos Murmúrios
São apenas referências, estas, a excertos de um livro de que gosto muito pelo seu conteúdo reflexivo ou a pedir reflexão. Já tenho dito, em alguns comentários que deixo por aí, que sou leitora exigente e não é uma qualquer Rebelo Pinto que me faz perder horas de vida. Melhor, muito melhor do que isso temos aqui, e aqui e aqui e aqui, que me perdoem muitos outros mas hoje não os vou citar todos. Tudo a seu tempo.
Vem isto a propósito da notícia que há pouco ouvi acerca de mais duas execuções esperadas no Iraque para os próximos dias.
“Entre o bem e o mal uma mortalha de papel de seda”, diz ela numa obra que para mim é ímpar na sua teia narrativa, que parte de um relato escrito a posteriori por um não interveniente nos eventos relatados, e vai desmontando o relato louvando-o, mas provando, página a página, que aquilo que se diz depois "não vale a casca de um pêssego", e tudo o que fica do que passou é "uma memória fluida".
Ora para que ando eu às voltas com estas frases?
É que nas minhas andanças pela História acabo a concluir, vezes sem conta, que o passado é tão irrepresentável como a verdade; e por isso, o que se disser daqui a uns tempos não equivale nunca ao que se passou, quando o próprio jornalismo acaba por ser um rol de interpretações, a gosto (e a interesse) e de quem escreve e de quem manda escrever, referindo-se a coisas do presente…
Estaline apagou os sucessivos inimigos das fotografias (e nem photoshop tinha…); Auschwitz é dado como uma falsidade judaica pelas novas frentes nacionalistas austríacas e alemãs; Hitler mandou enterrar cacos para que os seus arqueólogos descobrissem nas escavações a lendária origem ariana do povo eleito, marcada por uma suástica que vai buscar as origens aos cultos celtas, aztecas ou hindus, entre outros.
Que outros exemplos? São inúmeros.
Lembro-me da estátua de Saddam Hussein a cair quando da chegada americana e lembro com igual espanto o que li há menos de uma semana sobre as declarações de Bush acerca da execução ocorrida: um passo para o processo de instalação da democracia no mundo, ou qualquer coisa assim… (o que se disser depois disto "não vale a casca de um pêssego")...
Questiono-me, como ela, acerca do bem e do mal.
E termino esta reflexão com um exemplo mais actual – Cavaco Silva diz que vai estar atento à actuação do governo. Referiu uma das áreas críticas (que me toca, naturalmente), dizendo que é hora de se começarem a ver resultados. Ele, que teve 5 ministros da Educação nos seus governos, qual deles o que deixou um rasto de maior mediocridade no acerto das reformas sucessivas que vieram a desembocar no ensino que hoje temos, ainda à nora com a melhor teoria para melhorar os resultados... ("entre o passado e o presente, uma memória fluída"). Há que fazer transitar os alunos para que se vejam resultados. Não importa que não saibam ler nem escrever. O que importa, isso sim, é que não saibam pensar. Cidadãos autómatos, colados às tecnologias, que não saibam ouvir um telejornal sem que o comentador respectivo venha ajudar a interpretar a notícia (qual notícia? O fait-divers, claro!)… Talvez venham a fuzilar gente, os meus alunos mais inteligentes, se o caminho que continua a ser apontado excluir o conhecimento da História, da Filosofia e de outras coisas importantes para se perceber outras razões para se estar aqui que não sejam apenas as teclas de um computador que, efectivamente, nos ligam ao Mundo.
"Entre o bem e o mal, uma mortalha de papel de seda".
Teria pano para mangas se continuasse a escrever...
Deixo isso para quem quiser. Siga a dança!
17 comments:
obrigada, Pirata, por estares atento.
Continuo a fascinar-me com este livro. E também com a História associada ao seu conteúdo. Aquela História de que ninguém vai falar mais tarde. Ou, se falarem, será para contar outras versões, ao sabor da corrente política e dos seus interesses. Pena que pessoas como tu não deixem isso escrito, para que conste!
...ou pare a dança, que não se cansa o mandador!
Afectuosamente
Tu és maluca, rapariga! Um dia destes internam-te!
Copiei o "Ministério pimba da Educação" que saíu hoje no Público para o RoubArte. Vem a propósito...
Obrigada Zumbido pela referência. Já a coloquei no texto, para quem quiser. Trata-se de um texto longo, mas com uma ainda mais longa lucidez, que termina assim:
"Seja qual for a estratégia, o primeiro axioma tem de ser este: o conhecimento tem valor intrínseco, em si e por si, e é do maior interesse público protegê-lo e transmiti-lo, e ensinar a produzi-lo - e só a escola pode fazer isso, ainda que infelizmente o tenha de fazer contra o Ministério pimba da Educação".
Escrito por Desidério Murcho, Professor de Filosofia - no Público de 4 de Janeiro de 2007
Nem vou dizer nada, mas só posso estar de acordo com o que dizes. Um quadro feio e pesado.
Beijinho
"Entre o bem e o mal, uma mortalha de papel de seda".
... que mais posso dizer a não ser apaudir aquilo que li?
Um abraço e grata pela sua excelente escrita.
Não conheço a obra mas vou comprar já esta na lista dos proximos livros a adquirir...
Gosto muito de ler fazendo disso um acréscimo aos meus conhecimentos. Não posso comprar os livros que queria mas por aqui leio imensos blogues com coisas bem preenchentes, autênticas escolas de vida e outros apenas pela doçura e leveza, o tal rebuçado entre o que nos põem perante a razão tão caústica e o sonho.
Tu de facto és excepcional e vou na tua onda, autêntico tubo de surf, e apenas digo OBRIGADO!
Beijos sinceros
Ora não querem lá ver que agora se deve valorizar o conhecimento e não a aptidão para cumprir ordens?... ;)
Quando se conhecem "coisas", relacionam-se e acaba por se concluir algo e quando as pessoas pensam, ficam muito imprevisíveis, como os independentes. ;)
Este governo não quer aumentar a qualidade do ensino, quer é apresentar taxas de sucesso como uma televisão quer aumentar as audiências. E para arregimentar cães prontos a obedecer à voz do dono, nada como começar a "educá-los" desde pequeninos.
Felicitações pelo bom gosto literário! Folgo em saber que, se dependesse de pessoas como nós, a MRP não seria escritora!
Obrigada pela visita ao meu blog, e peço desculpa por não saber que era uma senhora, mas só agora vi o seu perfil.
Quanto à questão da educação e sem querer tirar-lhe a razão, há uma questão que me inquieta: a maioria dos jovens portugueses tira cursos superiores e depois exige ser tratado por doutor(a), mas o nível intelectual e cultural é tão baixo que até aflige!
... não me parece, não obstante.
todos a quem te referiste são excelentes escritores, no entanto, continuo a ter uma predileção especial pela tua escrita, gostaria que continuasses a dissertar...
li a lídia há algum tempo. acho "múrmúrio" uma palavra linda!!
talvez releia.
aliás era giro(!) ter tempo para reler e rever... quase tudo.
sabes certamente que tudo é mercadoria, estamos todos lá dentro. pensar é altamente desaconselhado!
se há algo para fazer, é,claramente, tarefa individual ou de grupos pequenos.
(quanto ao outro assunto, decidi confiar na minha intuição até prova em contrário!)
bom tudo, elipse, até já
sim, entre o bem e o mal, uma mortalha, que é sempre diferente, mas que perpetua o efeito. no passado como nos tempos que correm e vão correr. de resto, correm tanto que mesmo o bem e o mal deixam de ser os mesmos. talvez só existam labaredas de bem e de mal e de mortalhas. e nós, entre tempos. cada um a ver o seu. ninguém se entende.
Depois do balanço a desilusão para com o futuro...
E não sou eu que te vou contradizer!
"Teria pano para mangas se continuasse a escrever..."
Pena é que não continues, teria muito gosto em continuar a ler.
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