Sunday, January 07, 2007

Buscas


Limei-me em fios de navalha, gumes de arrasto e raiva, quando os tempos passavam rente aos olhos sem rumo, rodas abertas de assombro.
Arranquei as crostas sempre antes do tempo ou as feridas instalaram-se em má carnadura, marcas ferradas em telas frágeis.
Bebi em malgas de aresta, contacto rugoso com lábios que secavam na contenção do pranto, superfícies ásperas a macerar flores mordidas.
Talhei bolos de terra e água contra a parede irregular do fundo do quintal e entalei os dedos no portão de ferro, vergão a doer sem lágrimas.
Pulei as cercas da imaginação, parada no mesmo lugar, sem que ninguém soubesse, fantasmas no escuro sobre o peito e eu deitada.
Puxei para cima da cabeça o cobertor dos Invernos de pés frios na humidade das paredes escassas, cheiro soluçado a casa triste.
Tapei os ouvidos com um crivo esburacado e contive o grito, tristeza amontoada em cruz nos olhos, riso frouxo na névoa.
Assanhei a voz para dentro, estilhaços de rouquidão sobrepostos, a pesar nos escombros da vontade.
Vesti asas e fingi voos enquanto a outra se colava ao chão, peso a mais sobre as pernas magras, escarpas entrecortadas por abismos a amedrontar as descobertas.
Roubei o sossego aos deuses e converti-me em tempestade, neblina, maré em fundo cinza, espuma desfeita.

12 comments:

addiragram said...

Só quem tem a capacidade para tolerarar a dor, a olhar e a escrever...realmente BUSCA.

Anonymous said...

Quando a dor se entranha desta maneira profunda, parece que não mais nos larga que nem manto pesado que tudo cobre

Fatyly said...

Marcas profundas, pesadas e intolerantes atenuadas apenas pelo tempo!

Anonymous said...

QUerida Elipse,
...brilhante. Como brilhante e distante é a realidade ou o sonho que comentas. Hoje em dia resta a playstation.

Bjicos

~pi said...

...e da espuma nasceu afrodite...

beijo, elipse, mulher elítica entre o amor e a dor.

(ps não há assim muita "explicação" na vida, digo eu...)

até já

~pi said...

elíptica??

~pi said...

elíptica??

deve ser, deve...

Anonymous said...

Até as faces molhadas pelas lágrimas que nunca caíram podem um dia contorcer-se num sorriso disforme de quem não sabe ou não se lembra o que é sorrir. Será esse sorriso que buscas?

Anonymous said...

Há uma cinzenta similitude que escorre das palavras e da imagem. Na Natureza, o tempo baço e sem cor, diz-se, é o manto que sossega a terra para a fertilização que há-de chegar; seja, nas palavras, o adubo para um sol vir a despontar...

Anonymous said...

acho interessante a tua acção: limaste, arrancaste, bebeste, talhaste, pulaste, puxaste, tapaste, assanhaste, vestiste e roubaste... mulher, parece q fugiste da prisão e q andas a fugir à polícia! ;) eh eh!

wind said...

Tanta dor e marcas estão aqui.
Mas incrivelmente está escrito de uma forma magnífica!
Mas o "passado já lá foi":)
beijos

ivamarle said...

tão em carne viva este texto, nebuloso, e gritante...

mais um para a minha colectânea...