Wednesday, August 09, 2006

O Verão também tem horrores



Quando Agosto chega e com ele este calor entediante e cansativo, não posso deixar de me lembrar de um relato soberbo de Mário de Carvalho em

Era bom que trocássemos algumas ideias sobre o assunto:

“E ei-los assim a altercar a travessia do Sado, alheados dos golfinhos, a caminho do seu primeiro dia de férias, como sempre, na Costa da Caparica, em Santo António, num rés-do-chão que arrendavam há anos a uma velha rabugenta, proprietária de muitos gatos, cujo odor continuava a impregnar a alcatifa, ainda que no Verão estivessem carinhosamente recolhidos noutro lugar qualquer, para dar lugar a veraneantes.
E, por ora, ponto final.

Joel Strosse tinha agarrado numa revista francesa, Ça Ira! E procurava concentrar-se num artigo intitulado “La gauche post-moderne, une déconstruction em marche?”, mas não conseguia passar do primeiro parágrafo. Era à tarde, cirandavam moscas em de permeio, umas melgas franco-atiradoras, prontas a atacar pela calada da noite, com aquele ruído característico da Fórmula 1, mais irritante que as alergias da matadura.

(…) pela janela gradeada via passar os veraneantes que regressavam da praia, dobrados ao peso dos guarda-sóis, basto enfadados , num carreiro sem fim. Pareciam zombies, de carnadura flácida, jeito mortiço e olhar vazio. Esta época obriga as pessoas a ir para a praia, a aturar a incomodidade de areias peganhentas, águas geladas, golpes de vento, bafos de multidão, peixes venenosos, miúdos turbulentos, sal na pele, transpiração, queimaduras, insolações, chatices, para confirmar que as práticas rituais só são válidas com algum desconforto. Há que prestar uma contrapartida pela conformação ao social. Está estabelecido pelas leis férreas do planeta.

(…) Cremilde, sentada num sofá estampado de flores, cujos castanhos e cinzentos não se sabia bem se eram obra do artista desenhador ou do uso continuado, ia folheando a Elle e perorando destarte:
─ Vem aqui que as varizes não têm cura. A operação pode aliviar um bocado mas cura é que não há. É um médico que diz. Traz fotografia e tudo.
Joel chegou-se à janela com o intuito de baixar a gelosia, tarefa árdua, científica e complicada, com aqueles fios todos num emaranhamento marujo.
(...)

As ruas ficavam cheias de gente, (...) os contentores transbordavam de lixo (...). Ainda por cima, havia bichas no supermercado e o ambiente estava impregnado por fumos de churrasco de frango dos restaurantes improvisados, geralmente governados por bigodaças imundos, com barretes às três pancadas, muito refractários às inspecções dasactividades económicas."

Mário de Carvalho, Era bom que trocássemos algumas ideias sobre o assunto, ed Caminho, 1995, pp. 42-45

7 comments:

firmina12 said...

deve ser a melhor leitura para este verão mortal

Anonymous said...

e eu fujo desses horrores e subscrevo as palavras de pirata-vermelho...bota aí algo teu ohhhh talentosa!
Beijos

Francisco del Mundo said...

Conheço bem essa praia...:D Esse estado de espirito...:D
Beijo

psique said...

Conheço bem esse livro.. a praia não.

wind said...

Bem é tal e qual:)
Detesto esse movimento todo também.
beijos

ivamarle said...

é bem verdade, este mês é insuportável em sítios de veraneio.Adoro Mário de Carvalho, o 1º que li foi "O homem que engoliu a lua", fiquei fã ;-)

Anonymous said...

Eu não sou fã de calor nem de praias. Então desses rituais aí (tão bem) descritos... ainda menos.