Monday, August 21, 2006

Cama Elástica



(... é uma história que estava lá para o fundo, escrita em Agosto, mas não este. Trouxe-a de novo...)

Era comum ouvirem-se múltiplos ruídos e eles denunciavam quem andava pelos espaços amplos da casa, corredores com retratos dos antepassados a vigiarem as traquinices e as intrigas, compartimentos a cheirarem a mofo, cumprindo os lugares de esconderijo nas aventuras da infância, escadarias de madeira encerada a servirem de escorrega à imaginação. À volta eram as pedras das paredes que reverberavam os sons do pensamento.
Ouviam-se os passinhos de pardalito do Zézinho, a dureza dos sapatos em que encarceraram os pés achatados da Paulinha, a borracha das sandálias do João Luís e o pisar ousado dos saltos conquistados pelos doze anos da Isabel. Ouvia-se tudo e sabia-se de tudo, apesar das paredes de pedra, masmorra de prisioneiros, dizia ela atirando as palavras contra o corpo baço da mãe.
Entre os sons havia agora um que se sobrepunha a todos os outros, vindo do compartimento mais apertado, um ruído que se afirmava com uma cadência certa, acompanhado do som persistente do suor que vinha das entranhas e colava os cabelos loiros da garota ao seu rosto claro. Um som que se tornava familiar mas que incomodava sempre a paciência do avô, enrolado num chaile, num quarto de janelas fechadas: “um dia a miúda ainda se parte toda!” gritava o velho do abandono do seu canto, suplicando ainda mais uma vez à filha que desse fim àquela cama elástica que desde há semanas tinha sido colocada na pacatez do palacete familiar.
A mãe cedera à persistência com que o pai falara no objecto mas começava já a dar razão ao velho. Não eram as queixas que a incomodavam, não, mas a ameaça sobre a sua paz. Uma ameaça que vinha desde o nascimento, desde que aquele ser miudinho a desafiou, mal definiu o verde dos olhos. O que restava dessa paz eram farrapos, desfeitos agora pelo ritmo infernal com que ela saltava no elástico vermelho, de olhos abertos em direcção ao tecto.
O pai dissera que a miúda iria cansar-se ao fim de uma horas e que dormiria noites mais serenas; deixaria de andar a saltitar pelos corredores e a pular canteiros derrubando as sebes; deixaria de trepar as árvores para chegar às nuvens.
Tinham passado dois meses e ela não saíra daquele compartimento fechado. Teimava em saltar cada vez mais alto e quando a mãe vinha, lembrando outra vez o pão do lanche, assanhava os olhos e esticava as mãos exibindo as garras côncavas. “Ela diz que vai chegar ao mar!”, repetia a voz da mãe, em desafio.
No quarto o velho tapava os ouvidos e chorava devagarinho, antevendo a desgraça mas desejando-a, cerrando os punhos e rindo para dentro de si, como se o desejo fosse uma asa.
Os elásticos desafiavam as leis da gravidade, sob os pés alados da miúda. De facto, era visível o branco rendilhado dos apêndices que se desenvolviam a partir dos tornozelos. E enquanto as asitas cresciam ela melhorava os saltos, uma vez e outra vez e outra vez e ainda outra.
Fixara um ponto junto ao tecto, uma espécie de quadrado que era uma janela aberta na imaginação, ponto de fuga, diria depois, desenhado ali junto ao tecto. Fixou o ponto, bem no centro do quadrado, e inspirou o ar todo da sala para dentro dos pulmões, abrindo mais os olhos transparentes para que neles se reflectisse o céu através das pedras.
O velho ouviu o barulho e ocorreu-lhe a ideia de um terramoto, mas sabia. Por isso ficou em silêncio. A mãe gritou e ouviu-se, aflita, na sua voz de vítima. No tecto da masmorra ficou um buraco, alargada a dimensão do quadrado desenhado a vermelho. Ela já voava sobre a construção, que oscilava sob o efeito demolidor que o buraco causara na estrutura. Voava sem olhar para as pedras que se soltavam e já via o mar.

9 comments:

mfc said...

Se "voar" fosse assim possível, era possível percebermos o mundo... e percebermo-nos a nós.

Francisco del Mundo said...

Sempre que venho a este blog, acho que não escrevo a ponta de um chavo furado...:)

Anonymous said...

Fantástico e concordo contigo francisco, eu idem idem aspas aspas!

Anonymous said...

Quando venho cá, sinto o mesmo que vocês. Muitas vezes até me faltam as palavras para escrever os comentários. Mas gosto sempre de pensar, que também eu um dia hei de ver o mar.

Graca Neves - mgbon said...

será esta a paz que a mãe sentia a meaçada?
belo texto, cheio de emoções contidas só percebidas pelo movimento imparável da cama elástica!...

wind said...

Sublime, divinal, genial, todos os adjectivos bons!
beijos

ivamarle said...

adorei este texto; a tua imaginação só poderá ser equiparada à das crianças, mesmo. Gostei tanto que editei uma imagem com um link, no meu blog.Beijocas gordas!!

Thiago Forrest Gump said...

Belíssimo texto. Viajei na história por completo.


:)

Leo said...

Uma verdaeira delícia!