Monday, April 03, 2006

Histórias 2.

Ela dizia que o estímulo pode encontrar-se no desencanto e insistia em encantar-se com o abraço morno e o cheiro a quase tu. Depois acordava e entrava nas manhãs sem chegar a encontrar-se nelas; nem nas tardes invariavelmente enevoadas de fumo de cigarro e de incerteza.
Porém era fluente ao longo dos dias e em quase todas as situações, gostando de se colocar no centro, num quase palco de representações genuínas.
Chamava, pois, toda a gente para junto de si e o eco das palavras e dos risos amansava-lhe os silêncios. Tudo menos as horas vazias, pensava.
Andava por ali o ardil da triangulação; por isso ia inventando satisfações no pragmatismo que lhe era oferecido em bandeja dourada, fingindo aceitação. Melhor uma construção sólida, nem que seja pelo lado de fora, do que o nada.
Havia dias em que se convencia de não ser preciso usar as palavras, mas doía-lhe prescindir do verdadeiro encanto, embora a palavra desassossego lhe estivesse colada às mãos tecedeiras. Era por isso, pelo hábito de tecer sentidos cruzados em desenhos complexos, que a vida simples lhe atormentava os dias.
Não há tréguas para quem começa muito cedo a querer descortinar o mundo que está para além do fim da rua.

12 comments:

sisifo said...

Nem é bom pensar que as coisas que obtemos possam ser outras que não as que queremos. É por isso que tão ou mais difícil do que ser, é saber identificar o desejo no meio hostil da diversidade que mostra sempre algo mais, mesmo quando gastámos a última força para chegar ao que pensávamos ser o ponto mais alto. Como dizia o Almada noutro contexto, deve haver uma maneira mais simples de nos salvarmos.

Bastet said...

Não fosse a arrogância (e que mal que ela me fica) e agradeceria o meu retrato... não sendo assim, agradeço-te por partilhares este belíssimo texto tão cheio de verdades como de subtilezas. Foi bom conhecer-te. Um beijo :)*

Elipse said...

Sísifo... és um paradoxo!
Bastet, sou boa retratista, mas também boa ficcionista...
Nunca se sabe onde acaba uma e começa outra.

Elipse said...

... e eu sei lá o que tu pensas e o que tu adivinhas, pirata!
mesmo assim, obrigada pelos elogios.

mixtu said...

para essas pessoas nunca há tréguas... e não deve haver...
jinhos, gostei...

antónio paiva said...

.....também decidi não dar tréguas, obrigado pelas palavras.....

Beijinho e boa semana

Anonymous said...

e dar tréguas significa baixar os braços! Pura e simplesmente ADOREI!

beijos

K. said...

Pode ser como abrir uma caixa de Pandora...

mfc said...

... e estar-se preparado para o que se for encontrando. Somos uns pessimistas... avisados!

J25 said...

Um sorriso apenas. As tuas palavras nascem para ser contempladas e não para serem comentadas.

SoNosCredita said...

"Não há tréguas para quem começa muito cedo a querer descortinar o mundo que está para além do fim da rua."

o que eu sinto...

sem palavras!

peciscas said...

...o eco das palavras e dos risos amansava-lhe os silêncios...

Quantas vezes vivemos essa orgia de palavras e risos, apenas como disfarce de silêncios pesados e penosos?