Sunday, March 26, 2006

Histórias 1.

Ela dizia que não suportava ser a segunda. Ou a terceira, que não sabia exactamente de quem era o cheiro que ele trazia colado à pele quando chegava. Mas abria-lhe a porta e a primeira parte do serão era feita de agressividade. Pensava sempre que era a última noite, que a seguir se despedia do corpo dele para sempre e que partia, de madrugada, para outra terra ou para outro céu. Era mais fácil procurar outro céu e entrar nele de braços escancarados. Há sempre carinho a entrar pelos braços abertos de uma mulher. Ou neles. E depois o céu. Mas quando beijava outro corpo era nele que pensava e não havia céu que justificasse o conforto emprestado aos braços; parecia-lhe que só aquele toque oxigenava as suas células e que nada mais existia para além da violência dos corpos a amainar depois da satisfação. Era quando faziam as pazes ou ele falava de paz e de trazer as roupas e ficar para sempre naquele quarto. Invariavelmente partia antes do dia começar e ela acordava sozinha a repetir que tinha sido a última vez. Depois o dia começava. E os braços que se apertavam um no outro, fechando-se todo o espaço pelo lado de fora, eram os dela.

22 comments:

mfc said...

Um tocante texto de solidão...

antónio paiva said...

.....há coisas que não mudam, apenas porque existem outras coisas, há coisas que nos fazem voltar sempre.....

Beijinho

Ivo Cação said...

Como tu dizes na Divas "Logo, dependendo de ser sábado ou quarta-feira, ou de ter comido um jantar avantajado ou uma sopa apressada, ou de ter ido ao cinema sozinha ou acompanhada..." em cada momento somos seres diferentes e lemos a realidade de maneira diferente. Isso acrescenta várias ordens de grandeza à variedade - já de si grande - com que o mundo se nos apresenta. Não é por isso de estranhar que aquilo que apetece à noite não seja o mesmo que apetece de manhã, esteja sol ou chuva, seja verão ou primavera. É bom que dessa diversidade das leituras e interpretações nasçam sempre novos textos que atravessamos como se estivéssemos lá, na mesma cama, nos mesmos braços, na mesma incerteza...

Anonymous said...

Um texto fabuloso, escrito com um sentido (o teu) e lido por dez poderá suscitar dez sentidos diferentes (entre os quais o meu)
Pois bem...o meu:
Essa espera/rotina/esperança/acreditar. é das coisas mais terríveise bestas, porque a pior solidão é a que sentimos quando acompanhados.
Parabéns e adorei!

Mac Adame said...

Está óptimo. Acho que já tinha dito que escreves muito bem, portanto não me vou repetir.

Eva said...

Sentires, solidão e desejo.
Gostei bastante.

Hoje navego de blog em blog. Vou voltar aqui novamente.

Eva

SoNosCredita said...

há razões que a própria razão desconhece...

Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

olha, eu hoje não abusei, ao almoço fiquei-me por um grelhado. sabia que era segunda-feira e já bastava para mau humor! deve ser por isso que te li como se estivesse de férias, e ali ao meu lado, uma amiga de há muitos anos, me contasse a última relação, sem falsas esperanças, mas ainda apaixonada. e eu acabasse a dizer-lhe, merda mas porque não me telefonas? e nos abraçássemos, dada a tradição de ora eu ora tu e quando vamos deixar de nos sentirmos sós?

mixtu said...

as pazes... a eterna espera...
jinhos

peciscas said...

Quantas histórias de encontros e desencontros repetidos a vida nos traz...

K. said...

"Há sempre carinho a entrar pelos braços abertos de uma mulher"

No need to say more...

Anonymous said...

o hábito faz o monge... sim, tb nos habituamos àquilo q nos faz mal... ela ñ era feliz, mas era feliz qdo estava c ele...

Elipse said...

é bom quando se ouve dizer que se lêem as palavras como se estivéssemos lá. Objectivo conseguido... o da personagem Elipse.

Elipse said...

Pirata, traçaste um retrato fiel das instituições, do poder, da falsa fé, das inimizades intrínsecas, do desfile de vaidades e de figuras vãs... enfim... da cultura de empréstimo que hoje vivemos, mas que tomamos como nossa. Nada que outras épocas da história dos homens não tenham já vivido. Mas agora com mais lugares vazios, à conta de nos encherem a cabeça com um marketing a que dificilmente resistimos. (lembro só o apelo bancário). Foste brilhante.
Precisamos disto,sim.Tens razão. De espaços de discussão e de reflexão conjunta. E estamos também virados para os nossos umbigos, sim.
Se lançaste a discussão para fazer deste espaço O TAL e quiseste que sentisse o texto como crítica a uma eventual "leviandade" que me leva a escrever coisas de sentimento... fizeste bem.

Porém, aqui neste espaço há uma Elipse que se gosta assim. Pouco há a fazer...

Teremos, pois de arranjar outro espaço de debate social, importantíssimo no nosso contexto e na nossa actualidade. Sugiro-te que o cries. Serei tua leitora assídua e comentarei com gosto os teus textos, cuja qualidade aqui afirmo.
E deixo-te um beijo elípitico.

jp(JoanaPestana) said...

:-)*

Anonymous said...

"Há sempre carinho a entrar pelos braços abertos de uma mulher. Ou neles. E depois o céu"
Gostei muito deste bocadinho...diz tanto das moleculas de que somos feitas...

Obrigada pelo mail...afinal "palavrinhas" estava bem "hotmail" é que não :-)...e mais foi um prazer conhecer o teu blog, e encantei-me com as "palavrinhas" e com as imagens...volto!!

Luna said...

As vezes é preciso acreditar na que a vida é real para se começar a viver, vivemos na esperança, no recomeço enfim sempre algo inacabado.

Lúcia said...

é a vontade de sofrer, de não querer mudar.
a solidão será a responsável? ou será uma consequência?

J25 said...

Uma mulher doce como tu só poderia escrever sobremesas como esta, deliciosa de se ler...

JOKA GRANDE
P#$% da Loucura

Anonymous said...

A vida é cheia de encontros e desencontros, solidão, alegria.
Os recomeços são sempre maravilhosos...
Bjs

ivamarle said...

Chega a ser pungente a tua escrita, que maravilha!!
recordou-me este do Vitor M. e Sá
"Embora já não tragas nos teus gestos
A primeira casa da ternura,

A que fechaste noutros corpos
Contentes apenas de te darem
O corpo ainda (e fácil) das paredes,
O amor mobilado, a melancólica
Visita do mundo das janelas;

E embora a ousasses por ruas que iam da
A outros braços e rostos e te abriram
Cidades de palavras, lábios puros
(ou apenas te prenderam e magoaram)

e também não fossem ainda para ti
os amargos dedos tristes não sei onde
e usados corpos que mudei ou que despi
nem o amor comprado amor gratuito
e a trémula chave adolescente
da carne inaugurada e repetida,

só agora, meu amor, unimos
olhos fiéis a beijos claros
e fundos corações dentro da noite
(como se fora, embora, em pleno dia)
e dedos densos que são veias
diárias e discretas da alegria
e muitas palavras que só querem
fazer-te sempre companhia.

É de nós que nasce agora a madrugada.

(nunca teremos tudo
e já não precisamos de mais nada)

rui-son said...

Gostei muito do texto. É uma escrita que se sente muito.Acima de tudo, a mim, lembra-me, que as promeças que mais custam manter, são as que fazemos a nós proprios e não as que fazemos aos outros.