Wednesday, January 25, 2006

O Lugar do Morto

O Ivar demorou uns dias mas valeu a pena. Aqui fica um texto... sobre cadeiras vazias...


Há muito que Helena percebeu que não sabe escrever, mesmo quando escreve muito, e que é a escrita que se escreve a ela mesma. Escreve uma frase e dai nascem duas, depois quatro, depois oito. Até recomeçar o processo inverso e as frases começarem a rarear. No fim é raro reconhecer-se num texto mas, não sabe muito bem porquê, costuma ter vergonha de o dizer.

Quando Pedro morreu disse-lhe olá. Depois calou-se para sempre. Helena lembra-se que os cheiros das coisas para onde olhava preenchiam o silêncio que veio depois: as maçãs verdes amontoadas numa fruteira de verga, uma mosca insistindo contra o vidro, um cigarro mal fumado num copo de iogurte improvisando um cinzeiro. Depois achou que as coisas são cruéis, porque ficam a fazer troça de nós quando morrem as pessoas que os usaram.

Olá, vou a conduzir, tenho que desligar. Foi o que ele disse. Ela insistiu com um suspiro e explicou-lhe que não sabia escrever, depois ouviu um estrondo, e depois veio o silêncio e os cheiros das coisas. Mais tarde alguém lhe explicou que o carro foi esmagado por um camião que transportava porcos, e que os porcos povoaram a estrada depois do embate, e que chegaram a comer parte do cadáver. Helena desligou. Desligou-se dos dias. Ela não ia no lugar do morto porque tinha adormecido. Só por isso.

Hoje a madrugada veio mais de mansinho, e aconchegou-lhe os lençóis quando ela acordou. Depois segredou-lhe que lá fora existe um ainda. Ainda beijos embrulham de cores a amargura dos dias, ainda os insectos se encostam ao calor dos intermitentes candeeiros públicos, ainda o álcool mantém longas conversas com um desses candeeiros que ainda se mantém de pé. Ainda adolescentes passam cabisbaixos pelas prostitutas da rua, que ainda ajeitam o cabelo antes de abordarem automóveis que encostam devagar, que ainda desligam os faróis quando viram para o deserto noctívago que povoa um campo de futebol abandonado. Quando Pedro morreu disse-lhe olá. Quando Pedro morreu a madrugada seguinte não lhe disse nada.

Hoje a madrugada veio mais de mansinho, e segredou-lhe que as flores do muro se alongam sobre as cadeiras onde ambos escreviam futuros incertos. Depois pediu-lhe para se sentar numa delas. A outra ficará vazia, talvez porque seja um lugar do morto, talvez porque ele tenha apenas adormecido.



E para terminar esta série de textos "emprestados" aqui fica o texto da Hipátia, do Voz em Fuga:

No país dos sonhos, estavam sentados lado a lado e falavam de tudo com bonomia. Amordaçavam o espaço que os separava com grinaldas de sorrisos e contavam segredos como se nada os fizesse divergir.
No país dos sonhos, ouviam Jorge Palma a falar da terra que há-de ser sobre a terra que nunca pode vir. E alimentavam-se de palavras, que eram sempre o bastante para encher a barriga e não havia contas, nem filhos, nem patrões, nem desconcertos e desgovernos e eleições. E ficavam na terra dos sonhos sempre que queriam fugir. Estão lá ainda, lado a lado, sentados nas suas cadeiras brancas, a ver a manhã branca a florir radiosa nos seus tinta graus à sombra e o chapéu de sol emprestado pela vizinha. Fugiram para lá ontem e não querem regressar.
No hoje, há uma mesa de permeio e uma zanga sem fim. E há contas para pagar e desgovernos e inflação. E faz frio. Demasiado frio para ainda sobreviverem os sonhos.

6 comments:

mfc said...

Mas não adormeceu...por isso aquele "Olá"!
Não é possível dizer mais que a condensação do sentimento.

Anonymous said...

Obrigado Palavrinhas, por me deixares dormir esta noite aqui, na entrada do teu blog.

Anonymous said...

Oh! E se valeu a pena! Original como só o Ivar. Mais um tapete voador.

Toze said...

Arranjei tempo para te vir dar um beijo :)

ivamarle said...

beeem....este Senhor é um Mister a escrever, traz-me a quietude de Isabel Allende e a serenidade de Garcia Marquez. Como eu gostava de escrever assim...

Hipatia said...

(Estou muito atrasada?)

No país dos sonhos, estavam sentados lado a lado e falavam de tudo com bonomia. Amordaçavam o espaço que os separava com grinaldas de sorrisos e contavam segredos como se nada os fizesse divergir. No país dos sonhos, ouviam Jorge Palma a falar da terra que há-de ser sobre a terra que nunca pode vir. E alimentavam-se de palavras, que eram sempre o bastante para encher a barriga e não havia contas, nem filhos, nem patrões, nem desconcertos e desgovernos e eleições. E ficavam na terra dos sonhos sempre que queriam fugir. Estão lá ainda, lado a lado, sentados nas suas cadeiras brancas, a ver a manhã branca a florir radiosa nos seus tinta graus à sombra e o chapéu de sol emprestado pela vizinha. Fugiram para lá ontem e não querem regressar. No hoje, há uma mesa de permeio e uma zanga sem fim. E há contas para pagar e desgovernos e inflação. E faz frio. Demasiado frio para ainda sobreviverem os sonhos.