Sunday, December 18, 2005

Uma Sopa e duas Vidas

(O ToZé mandou-me a foto e sugeriu-me um texto... aceitam-se imterpretações para uma imagem tão bonita.)

Fica um pouco comigo não te vás já. Bem sei que a vida corre depressa e o tempo não chega para cuidares de tudo o que é o teu sentido, os miúdos, a casa, o tempo… ginásio, cabeleireira, viagens, reuniões… e diversões.
Já me deste a sopa, caldo atrasado para animar um pouco o corpo cansado; caldo entornado quando chegas e me vês desanimada, quase desamparada; é como me sinto quando me olhas e eu te digo com os olhos – fica um pouco comigo.
Já me deste a sopa e correste para o carro dizendo que o tempo é pouco. Fique bem, disseste tu de fugida, contra os meus olhos que agora são miudinhos e já não brilham como no dia em que te dei ao mundo; e tu tão pequenina, tão dentro das minhas mãos onde agora pões um malga de sopa antes de te ires a correr. Vivo das lembranças, eu sei que tens muito que fazer.
Fica um pouco comigo, digo eu calada, desolada, quase culpada por estar ainda aqui e ser o teu desassossego de todos os dias.
Mas sabes, eu fico bem assim. Deixa-me aqui entretida. E vai, que tens a tua vida.

No lugar do Escárnio e Maldizer faz-se assim uma legenda:

vê como estou, como a sopa que me dão antes era eu que a fazia, nem me sento nem saboreio, engulo a sopa que me dão, vês, antes era eu que a fazia e deitava-lhe pedaços de carne quando havia e couve todos os dias. fazia o caldo no pote ao lume, agora como a sopa que me dão, vês? é assim a vida filha, já não me deixam fazer a sopa e como a que me dão... e tu? 'tás magrinha, tens comido bem? lembras-te das sopas que eu fazia? quando podia era caldo, mas sempre no pote ao lume! ai filha vês?

E veio o Ivo Cação, do Zumbido, que disse:

Podemos olhar para um rosto e ver nele o tempo. Imaginar que esse tempo foi todo ele como se nos apresenta agora. Pensar que nos interstícios de cada ruga se alojou um desgosto. Mas também podemos ver no olhar firme o traço intenso da vontade e a fruição íntima de um gesto ou de uma memória. Digo eu. Que gosto de olhares fixos no horizonte, abandonados a uma reflexão que parece concentrar num instante todos os destinos. O nosso olhar é o momento do nosso olhar. E no rosto instantâneo, aliviado pela tigela de caldo, paira, naquela impressão primeira que me autorizou um sorriso terno, a posse de um passado cheio de acontecimentos, de acasos, de sortes e de perdas. Isso mesmo. Tal e qual como eu, tal e qual como nós. Um rosto que sobreviveu ao tempo, e que aparece agora recheado de idade, aconchegado pela roupa quente, alvo e quieto, imune às velocidades de quem ainda espera muito, lembra-me, às vezes, como neste caso, sabedoria. Parece-me, pelo menos nos dias bons, que não devo lamentar o tempo nem os cabelos brancos. A 'alma', essa animação que nos identifica e percorre um intervalo de tempo, tomando da terra a matéria emprestada, termina um dia. Mas cada um de nós é, enquanto é, só e apenas essa animação. E isso é extraordinário.

A Bastet viu assim:

Tenho nos olhos a ironia do que fui e ninguém sabe ou lembra. Tenho por vezes a tristeza desse esquecimento. Sei que este velho invólucro não ajuda à memória ou ao amor dos outros e, por isso, vivo sobretudo de recordações. Sinto o mundo da mesma maneira, o pulsar da terra e a diferença de um dia a mais. Tenho a vontade de gritar que ainda sou a mesma mas a certeza da estranheza desse grito. Porque somos sempre os mesmos. Iguais. A mesma essência numa matéria que se faz em brancos, dores e rugas. Esperei anos em vão pela suposta transformação. A que faria de mim alguém mais próximo do meu corpo. A que me transformaria na consciência da minha idade. E como é cruel ver-me como vi outros em outros tempos, quando então passava lesta e indiferente ao futuro. Quando o futuro nos chega às mãos e ao rosto apanha-nos desprevenidos. Porque somos a criança vestida de anos. Esperava eu que pudesse ser de outra forma. Que houvesse um lento descarregar das baterias da vida e da vontade para que me fosse indiferente o lugar que me cedem ou a beata compaixão que me concedem. Queria então justificar o jovem orgulho que me resta, sem o patético desprendimento que finjo. Ou que por milagre me vissem por dentro, para que lessem a origem desta arrogante agressividade. Põe-me nas mãos o caldo, a sopa que me alimenta a persistência mas que não me dá forças para me por fim. Pusessem-me na boca um beijo e escolhas nos dedos, chamassem-me ainda mulher e eu entenderia a roupagem deste meu destino.

E a joaninha viu-se assim:

Quando entro na sala de aula e vejo todos os seniores de olhos postos em mim, sinto-me como essa malga de sopa, ainda a fumegar, para reconfortar não estômagos, mas espíritos… e como é revigorante para mim o sentir isso…Pode ser uma forma de me libertar dos desamores… assim, eles são a minha tigela de caldo quente… Quando toca para a saída e me vêm beijar, sinto que cada beijo é um pedido de fica mais um pouco comigo… mas tenho de sair e dar lugar ao professor que segue… e senti isso, quando turmas imensas de adolescentes, ávidos de satisfazer as suas curiosidades, me vinham com canções da “berra”, para traduzir… para terem a minha atenção… são saudades que ficam… e eu, quase a chegar a um limite, quando vejo aqueles olhos, também gostaria que o grito interior fizesse eco, para lhe pedir para ficar mais um pouco comigo… mas apenas sou a imagem animada que o tempo deixou sem data… porque em cada novo rosto, ele vai encontrando uma nova paixão…Em linha também fui deixando as minhas palavras… e acabei por escrever demais, mas com tão magnífica foto e tão belos dizeres, não me contive.

A imagem chamou também a sensibilidade da Nokinhas:

Envelheci. O tempo teceu como rendas as rugas que já marcam o meu rosto e a neve poisou sobre a minha cabeça cobrindo-a com um véu branco. Os braços, que embalaram os filhos já não têm o mesmo vigor mas as minhas mãos, aquecidas pelo calor deste caldo partilhado contigo, com alguma tremura acariciam o teu rosto. Os meus olhos, que já não são o que foram antes, ainda te olham, embevecidos, e cintilam abrasados pelo calor da tua presença pois tu serás sempre o meu "menino". Deitando um olhar de relance à minha vida vejo um longo caminho percorrido com grandes provações mas, com a força que Deus me deu, hoje ainda estou aqui. Tenho casa, tenho esta sopa que muitos mendigam e que eu ainda faço com as minhas próprias mãos. O coração, esse está cheio de amor para dar. Envelheci. Mas só por fora. Por dentro ainda acalento a criança que há em mim. Vou do riso à lágrima, conforme me tocam o coração. Remo muitas vezes contra a maré e luto contra o desalento que teima em bater-me à porta querendo entrar. Espero ter forças para terminar a "caminhada". Estou viva!

E a Ivamarle, igualmente sensível nas suas palavras, viu também uma mãe saudosa.
Encosto-me à claridade, para que ela me aqueça um pouco o esquecimento vazio a que me votaram. Perde-se no murmúrio o meu olhar que já só vê memórias, e aqueço as mãos na taça de sopa, que me aquece, mas já não saboreio. Por vezes até penso: ao menos tenho uma sopa...na juventude quantas vezes quis e não tive, quando as senhas de racionamento não davam para matar a fome, e uma sardinha tinha que dar para quatro e à minha mãe só calhava a broa com o molho da sardinha cortada e dividida.Tantos sacrifícios...tanta luta, tanta noite em branco a pensar como iríamos arranjar-nos no dia seguinte, e eu ia para o pé do borralho aquecer-me e matar a cabeça: como? Onde? Ai os meus ricos filhos que não têm que comer, e eu não tenho quase força para cavar mais terra, para acarretar mais estrume, não tenho mais força para esquecer a morte do meu homem...ai os meus ricos filhos...E de manhã acordava acocorada no frio, e , sem saber como, levantava-me e fazia um chá de carqueja ou de tília, bebia um gole e deixava o resto, para os meus queridos meninos terem com o que enganar a fome. E saía e procurava o onde e o como, enganaríamos o estômago mais um dia. Recosto-me mais um pouco à claridade que se vai sumindo, e as memórias gelam-me as mãos e a sopa. Tanto sacrifício pelos meus meninos, e agora, há já anos que não vêm ver-me, ao princípio mandavam um xaile ou umas meias no Natal, e um postal a desejar Boas Festas, o último tem a data de há dois anos...queixam-se muito da vida, que lhes rouba o tempo e do dinheiro que só chega para as férias no Algarve e pouco mais; coitadinhos dos meus meninos, será que estão bem? E nem sequer me mandaram a fotografia do meu neto mais novo, que nem sequer conheço...encosto-me na espera, espero, desisto... a sopa está fria, mas ao menos, tenho uma sopa...

20 comments:

mfc said...

O tempo é implacável e há momentos da vida em que nos podemos sentir a mais.
Nunca transmitirei essa sensação a qualquer um dos meus próximos.
Um texto estupendo para uma foto de vida que diz muito.

Mushu said...

Não há melhor interpretação do que a que escreveste.
:)

J25 said...

Ao ler-te, senti-me transportado para a pele de quem fotografou...


P.S.: Já está publicado o teu Olho Direito ;)

Politikus said...

Uma bela imagem não há dúvidas... a intrepetação essa é sentida.

Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

a foto é lindissima e o texto é a melhor das legendas. esta solidão na última das velhices é feita de muitas contingências e (às vezes) friezas. mas não sei se haverá sempre essa compreensão por parte de quem fica com a malga na mão. de resto, pergunto-me por que raio exigimos essa compreensão. já reparaste que todos temos direito à revolta, mas os mais velhos não...

armando s. sousa said...

Muitíssima boa interpretação da fotografia e muitíssimo bem a descrição da vida moderna, em que não temos tempo, para as coisas mais importantes da vida.
Da próxima vez não me vou esquecer de dar uns mimos a mais à minha mãe!
Um abraço

Mónica said...

vê como estou, como a sopa q me dão antes era eu q a fazia, nem me sento nem saboreio, engulo a sopa que me dão, vês, antes era eu que a fazia e deitava-lhe pedaços de carne qdo havia e couve todos os dias. fazia o caldo no pote ao lume, agora como a sopa que me dão, vês? é assim a vida filha, já não me deixam fazer a sopa e como a que me dão... e tu? tás magrinha, tens comido bem? lembraste das sopas que eu fazia? quando podia era caldo, mas sempre no pote ao lume! ai filha vês?

Mónica said...

a tirar o retrato à velha, não faça isso!

Ivo Cação said...

Podemos olhar para um rosto e ver nele o tempo. Imaginar que esse tempo foi todo ele como se nos apresenta agora. Pensar que nos interstícios de cada ruga se alojou um desgosto.
Mas também podemos ver no olhar firme o traço intenso da vontade e a fruição íntima de um gesto ou de uma memória. Digo eu. Que gosto de olhares fixos no horizonte, abandonados a uma reflexão que parece concentrar num instante todos os destinos.
O nosso olhar é o momento do nosso olhar. E no rosto instantâneo, aliviado pela tigela de caldo, paira, naquela impressão primeira que me autorizou um sorriso terno, a posse de um passado cheio de acontecimentos, de acasos, de sortes e de perdas. Isso mesmo. Tal e qual como eu, tal e qual como nós.
Um rosto que sobreviveu ao tempo, e que aparece agora recheado de idade, aconchegado pela roupa quente, alvo e quieto, imune às velocidades de quem ainda espera muito, lembra-me, às vezes, como neste caso, sabedoria.
Parece-me, pelo menos nos dias bons, que não devo lamentar o tempo nem os cabelos brancos. A 'alma', essa animação que nos identifica e percorre um intervalo de tempo, tomando da terra a matéria emprestada, termina um dia. Mas cada um de nós é, enquanto é, só e apenas essa animação. E isso é extraordinário.

mfc said...

Uma sopa...duas vidas... e mais duas bonitas legendas para uma fotografia que diz muito.

Mónica said...

obrigada! o titulo é o teu! foi isso que me inspirou! uma sopa e duas vidas, eu enfatizei duas sopas=duas vidas, mas a sopa é a mesma! o titulo é o teu! gostei do desafio :-)))

joaninha said...

Quando entro na sala de aula e vejo todos os seniores de olhos postos em mim, sinto-me como essa malga de sopa, ainda a fumegar, para reconfortar não estômagos, mas espíritos… e como é revigorante para mim o sentir isso…
Pode ser uma forma de me libertar dos desamores… assim, eles são a minha tigela de caldo quente… Quando toca para a saída e me vêm beijar, sinto que cada beijo é um pedido de fica mais um pouco comigo… mas tenho de sair e dar lugar ao professor que segue… e senti isso, quando turmas imensas de adolescentes, ávidos de satisfazer as suas curiosidades, me vinham com canções da “berra”, para traduzir… para terem a minha atenção… são saudades que ficam… e eu, quase a chegar a um limite, quando vejo aqueles olhos, também gostaria que o grito interior fizesse eco, para lhe pedir para ficar mais um pouco comigo… mas apenas sou a imagem animada que o tempo deixou sem data… porque em cada novo rosto, ele vai encontrando uma nova paixão…

Em linha também fui deixando as minhas palavras… e acabei por escrever demais, mas com tão magnífica foto e tão belos dizeres, não me contive.
FELIZES FESTAS!

armando s. sousa said...

Reparei que fizeste o link lá para a minha tasca.
Muito obrigado.
Beijinhos.

Bastet said...

Respondi a este teu desafio lá no meu blog, com o link para aqui. Espreita e diz o que achas. Um beijo :)

mfc said...

Mais dois gritos interiores muito bonitos!

Carlos Azevedo said...

Hoje, sem poesia, e pela 3ª vez, 40 idosos foram almoçar na minha empresa porque os convidei e porque sei algumas coisas sobre o tempo e o espaço. Palavrinhas ? Não brinquem com coisas sérias

Elipse said...

Ora ainda bem que és tão sensível, Carlos, quanto cada uma das pessoas que aqui escreveu!

Leonor C.. said...

Envelheci. O tempo teceu como rendas as rugas que já marcam o meu rosto e a neve poisou sobre a minha cabeça cobrindo-a com um véu branco. Os braços, que embalaram os filhos já não têm o mesmo vigor mas as minhas mãos, aquecidas pelo calor deste caldo partilhado contigo, com alguma tremura acariciam o teu rosto. Os meus olhos, que já não são o que foram antes, ainda te olham, embevecidos, e cintilam abrasados pelo calor da tua presença pois tu serás sempre o meu "menino".
Deitando um olhar de relance à minha vida vejo um longo caminho percorrido com grandes provações mas, com a força que Deus me deu, hoje ainda estou aqui. Tenho casa, tenho esta sopa que muitos mendigam e que eu ainda faço com as minhas próprias mãos. O coração, esse está cheio de amor para dar. Envelheci. Mas só por fora. Por dentro ainda acalento a criança que há em mim. Vou do riso à lágrima, conforme me tocam o coração.
Remo muitas vezes contra a maré e luto contra o desalento que teima em bater-me à porta querendo entrar. Espero ter forças para terminar a "caminhada".
Estou viva!

ivamarle said...

Encosto-me à claridade, para que ela me aqueça um pouco o esquecimento vazio a que me votaram. Perde-se no murmúrio o meu olhar que já só vê memórias, e aqueço as mãos na taça de sopa, que me aquece, mas já não saboreio. Por vezes até penso: ao menos tenho uma sopa...na juventude quantas vezes quis e não tive, quando as senhas de racionamento não davam para matar a fome, e uma sardinha tinha que dar para quatro e à minha mãe só calhava a broa com o molho da sardinha cortada e dividida.
Tantos sacrifícios...tanta luta, tanta noite em branco a pensar como iríamos arranjar-nos no dia seguinte, e eu ia para o pé do borralho aquecer-me e matar a cabeça: como? Onde? Ai os meus ricos filhos que não têm que comer, e eu não tenho quase força para cavar mais terra, para acarretar mais estrume, não tenho mais força para esquecer a morte do meu homem...ai os meus ricos filhos...
E de manhã acordava acocorada no frio, e , sem saber como, levantava-me e fazia um chá de carqueja ou de tília, bebia um gole e deixava o resto, para os meus queridos meninos terem com o que enganar a fome. E saía e procurava o onde e o como, enganaríamos o estômago mais um dia. Recosto-me mais um pouco à claridade que se vai sumindo, e as memórias gelam-me as mãos e a sopa. Tanto sacrifício pelos meus meninos, e agora, há já anos que não vêm ver-me, ao princípio mandavam um xaile ou umas meias no Natal, e um postal a desejar Boas Festas, o último tem a data de há dois anos...queixam-se muito da vida, que lhes rouba o tempo e do dinheiro que só chega para as férias no Algarve e pouco mais; coitadinhos dos meus meninos, será que estão bem? E nem sequer me mandaram a fotografia do meu neto mais novo, que nem sequer conheço...encosto-me na espera, espero, desisto...a sopa está fria, mas ao menos, tenho uma sopa...

Anonymous said...

Ai, com o stress todo, não tenho tido o tempo e a inspiração necessária para participar neste teu desafio, mas tiveste respostas maravilhosas,a condizer com as tuas próprias palavras.

Aproveito para te desejar um Natal repleto de amor e uma ano novo cheio de saúde, alegria, inspiração, sonhos realizados e sonhos novinhos em folha!

Beijos!