Thursday, December 01, 2005

Podia ter sido assim (1)

Sei que eles cresceram entre as estevas e as figueiras arredondadas, matando a fome com figos, pela manhã, em dias de sol, que as figueiras frutificam na primavera, como todas as coisas da vida, quando seguem o seu curso normal. Pai dançarino, folião, surpreendido pelas responsabilidades da vida quando ainda nem tinha tido tempo de cumprir todas as voltinhas do baile mandado, que os homens demoram a maturar. Mãe robusta de tanto parir: vinha um filho em cada dois anos, era apenas o tempo de dar de mamar ao anterior e já se o seguinte vinha a caminho, sei-o eu, de tantas vezes ter ouvido a história.
Sei que ela ia à Igreja porque o cheiro das velas e dos incensos era como que a prova final, se lhe provocava o vómito. Tinha, então, a certeza de estar novamente grávida.

Devia ser assim a caminhada para a vila, em direcção ao lugar que consagrava essa certeza:

Quando as alpercatas iam chinelando sobre a areia mais escura abrandava o passo mas se as carrasqueiras rareavam, o sol castigava e tinha de andar mais depressa. Debaixo do chapéu de palha ainda tinha a protecção do lenço, atado em duas pontas coloridas debaixo do queixo, misturando-se o cheiro fresco das estevas com o da transpiração, as meias colando-se às pernas magras. Afrouxava o aperto das ligas, fazendo-as deslizar para os joelhos. Seguia apressada, as mãos a darem o impulso da marcha, de trás para a frente, da frente para trás. Sentia a pieira no peito e o respirar era ofegante mas já avistava as primeiras casas da vila.Começavam a ver-se os chiqueiros dos porcos, à espera da faca que separasse o toucinho para a salgadeira, que o mais dos tempos a fome roía as entranhas, quando a nudez do frio emaranhava pelos corpos... (continua)

8 comments:

maresia said...

no outro dia abateram a minha figueira. fiquei tão triste que, quando aqui cheguei, não fui capaz de passar da primeira frase... digam-me, é bonito o resto do texto?

jp(JoanaPestana) said...

Leio que a minha figueira te inspirou...
Tens mail menina pequena.
Beijo

mfc said...

Um retrato do Alentejo sofredor, trabalhador e maternal.

Anonymous said...

Bela viagem, espero pela continuação....

Rosario Andrade said...

Bom dia!
No quintal la de casa também havia uma figueira. Tinha um ramo que parecia um banquinho com um outro quase perpendicular para amparar as costas. Gostava de me sentar la para ler e reflectir...
Espero ansiosa a continuacao!
Abracicos!

stela said...

Só tenho a dizer, que adoro os teus textos!
bjs

Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

TEXTO RICO sobre um Alentejo pobre mas cheio de vida. e depois é delicioso: os sintomas da gravidez, o pormenor das ligas,...

à escuta.

PS: e a desgarrada, desculpa, mas a preguiça ou a desinspiração foi maior.

mfc said...

Fazes falta!