Sunday, October 09, 2005

Os primeiros tempos

Foi a evocação das memórias a que o escritor me obrigou, misturando-se, depois, o cheiro das folhas molhadas que voam por aí ao sabor de um vento bom...

Ocorrem-nos as memórias em dias destes. As nossas, as reais, e as das nossas personagens, não se sabendo já se nos lembramos do que foi ou do que poderia ter sido...




Naquele tempo a vida era ainda tímida e as horas eram longas.
O palco da infância era a rua toda; e a outra rua; espaços no lado de cá do mundo, havendo o outro, grande, desconhecido, abstracto.
Brincadeiras de meninos povoavam a imaginação, marcados no chão os riscos e na alma.
Só havia uma janela, nem sempre aberta aos sonhos, nem sempre companheira dos risos. Naquele tempo não se podiam comprar todos os lápis de cor, os desenhos ficavam quase a preto e branco mas nas folhas do papel já se viam os sonhos.
Brincávamos às escondidas, unidos na sombra de um presságio invariavelmente cumprido. E os risos da infância perdiam-se no medo e na revolta.
Naquele tempo cumpria-se o ritual de uma viagem antecedida de lágrimas e portas fechadas; mas a chegada era boa: o baloiço pendurado na oliveira, o gosto das primeiras nêsperas apanhadas da árvore de folhas poeirentas, o mel que pingava dos figos, o doce das uvas presas aos cachos negros... doces que acalmavam os medos e a incompreensão das coisas.
Só havia uma janela e os sonhos acotovelavam-se, prisioneiros, em desejos de voo.
Sonhos já expressos em palavras, no papel, a preto e branco.
Talvez naquele tempo o resto do mundo, grande, desconhecido, abstracto, chamasse já por mim enquanto os sonhos transbordavam o espaço e a alma.

2 comments:

O'Sanji said...

Vê o teu mail!

Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

enleio de memórias. tão doce!

PS: amanhã começam as eleições, e desta vez nenhum dos candidatos tem processos pendentes... que se saiba :)