Thursday, August 11, 2005

O problema do começo

Quando me telefonou com a urgência do encontro – tinha de ser para dali a meia hora, no máximo – já nem me dei ao trabalho de imaginar a situação. Disse ao gerente que descontasse uma manhã às minhas férias, tão longínquas sob a constância de uma chuva miudinha que inutilizava as duas horas gastas no cabeleireiro, e meti-me no carro.
Ela já tinha pedido o meu café, sentada numa confusão de fumo de cigarros e gabardinas transpiradas. Da última vez era a consciência a derramar lágrimas, depois de uma noite de vingança programada para um hotel de Sesimbra, precisando a voz de gastar-se em justificações e pedidos de legitimação do acto. Mas antes tinha sido a descoberta dramática de que o Cláudio André a enganava, tudo contado com pormenores e ameaças de suicídio, depois de outra vez em que me pedira dinheiro urgente para as obras da cozinha. Vinte minutos depois ainda a Lurdinhas contava, detalhadamente, histórias que me escapavam ao entendimento. Tinha de lhe dizer qualquer coisa; reparava agora que estava muito branca, as olheiras muito dramáticas e o guincho de um choro magro a incomodar-me a concentração.

Na mesa ao lado a gravata de riscas enquadrava-se bem na camisa monogramada e o tom de voz era convincente na argumentação, embora viesse do interlocutor e eu não o visse. O da gravata dizia que sim, que sim, e o outro assegurava que o projecto era arrojado mas garantido. Compravam um barco, talvez dois, contratavam dois ou três marinheiros experientes para não se correrem riscos desnecessários, davam jantar a três ou quatro sem-abrigo, desses que quanto mais sujos melhor, faziam uma preparação intensiva dos indivíduos, uma ou duas semanas de formação, que os fundos previam-na, e ele próprio faria de capelão, ou missionário, esses pormenores ficavam para depois. O da gravata agitava-se na cadeira; avisava, pelo telemóvel, que ia chegar um pouco mais tarde, bem se via, com a manhã chuvosa o trânsito estava impossível; e começava a incomodar-se com a curiosidade que eu devo ter posto na forma como lhes escutava as palavras. O outro entusiasmava-se, antecipando naufrágios simulados no Tejo, que as pessoas já não sabiam como preencher certos vazios e a empresa de emoções iria ter muito sucesso. O da gravata desencarcerou-se da camisa, aliviando o botão que o fazia transpirar e ficou mais atento. O outro continuava a expor-lhe os seus propósitos.

Não sei porquê, veio-me à ideia a travessia do Canal da Mancha antecedida da aproximação ao porto de Calais, em estradas de casario antigo, em cujas paredes se viam marcas das balas de há meio século. Tínhamos combinado fazer os registos dos pormenores, como um diário de bordo, para que um dia a memória não nos traísse. Ficaria tudo escrito e é por isso que me lembro que a viagem se iniciou com sol e um vento cortante. Há uma fotografia em que estou a agarrar o lenço cor-de-rosa para que ele não se solte do pescoço. Lembro-me também que abandonei a ideia da escrita a meio da viagem, quando o nevoeiro envolveu o barco e só se viam janelas salpicadas. Foi nessa altura que os bardos vieram, bailando em carrocel, aliviando-me da rugosidade de umas quantas palavras naufragadas. Enquanto jogávamos às cartas para ajudar a passar o tempo, um deles surgia das brumas, puxava-me para a montada do cavalo e desaparecíamos no ar, já o Francisco me dizia que não me distraísse, que era a minha vez de jogar.

Dei comigo a fazer um exercício de racionalidade – a Lurdinhas chorava, o parceiro do da gravata propunha aventuras no Tejo e a minha memória levava-me para a travessia do Canal da Mancha – e a concluir que só podia ser por causa da chuva.

Normalmente abomino a chuva. Mas também me desgostam os dias de calor excessivo, fico como que abalroada nos gestos, sem acção para me movimentar e nem as páginas de um livro me devolvem a paciência. Estava à mercê da água, naquela manhã invernosa, dissolvendo-me numa sensação incómoda de cansaço. Tinha estado a ler contos até muito tarde: histórias de mar, umas com sinais premonitórios de tragédias sob ventos e tempestades; outras relatando ousadias sobre a ordem cósmica seguidas de imersões nos abismos. Antes mesmo de adormecer deixara que as palavras me mostrassem o corpo do capitão pirata a afundar-se em silêncio, os dois homens cuspindo para as mãos e continuando a remar. Premonição de chuva, tanto mar pela noite dentro e personagens de mãos gretadas.

Olhei para o canto da sala: sentada, muito direita, de mãos serenamente pousadas sobre a mesa, uma cara enrugada parecia estar à espera. Não sei se tinha já comido ou se aguardava o empregado, se esperava o fim da chuva ou se apenas que o tempo continuasse a passar. Havia nela qualquer coisa que se assemelhava à imobilidade de uma pedra. Senti uma estranheza, uma impressão de esgotamento das palavras. E, no entanto, ela poderia representar todas as variantes e alternativas, todos os acontecimentos contidos no espaço e no tempo. Como se a sua presença cristalizasse a singularidade ordenada da matéria. Mas sem palavras.

Há, de facto, personagens ideais para contos. A Lurdinhas servia alguns modelos, ideal no melodrama ou nos desfechos imprevisíveis. Podia pedir-me para a ajudar numa congeminação maquiavélica, a morte do Cláudio André ou, quem sabe, um suicídio no Tejo, de cima da ponte, acabando-se tudo num mergulho mediático. Rui Belchior também podia servir. O outro pusera-lhe ironia no nome, quando o chamava a ouvir atentamente a ideia da empresa de emoções; pelo menos foi o que me pareceu quando lhe ouvi a gargalhada. De facto o nome não lhe assentava bem, não condizia com a finura do rosto, barbeado e hidratado e muito menos com os dedos esguios que podiam dizer-se de um Mendonça ou de um Menezes. Belchior devia incomodá-lo, como uma unha encravada, um espinho que se tivesse alojado entre a carne e a pele, produzindo uma secreção purulenta.

E, pensando bem, que fazia ali um tal indivíduo, a não ser desempenhar o meu próprio papel de registadora das histórias alheias.

Por outro lado, tinha também o pormenor da ira do gerente perante a minha ausência, agravada por um problema complicado que só eu podia resolver. Um homem gordo de faces congestionadas por uma selva de capilares rosados, cabelo muito farto e teimoso e uma dose incontida de mau génio sempre pronto a surgir por debaixo dos pêlos rebeldes das sobrancelhas. A ira de um gerente numa manhã de chuva daria um bom começo para um conto.

Risquei a ira e sublinhei a chuva. Parei, olhei para o ar, mordisquei o plástico da esferográfica. Estava farta de fumo e guarda-chuvas a pingar.

Saí do café com a sensação de ter estado aprisionada em histórias e precisei de andar um pouco a pé. Tentei não olhar para ninguém, embora o movimento, nas ruas de uma cidade, seja normalmente cruzado; raramente duas pessoas se dirigem para o mesmo sítio ou, se se dirigem, os propósitos afastam-nas do eixo comum. Quanto a mim, não queria dirigir-me para lugar nenhum, precisava apenas de desbastar uma quantidade de condicionalismos que estavam a cortar-me os diálogos e criar pormenores que não fossem simples fragmentos ou rumores de factos sem importância.

E enquanto divagava sobre a importância das coisas visualizei a grande mesa de carvalho onde todos tínhamos pousado as mãos: dezoito pares de mãos em atitude de espera, cada uma delas querendo esconder das outras os projectos feitos para o uso do dinheiro que viria a ser distribuído após a celebração da escritura de venda do terreno sob o qual deveríamos deixar enterrada a discórdia dos últimos anos. À medida que a voz profissional da notária reproduzia nomes e valores as mãos agitavam-se: uma tirava o anel e voltava a pô-lo no dedo da outra, duas mãos pequeninas apertavam-se, encaixando-se, enquanto outra pressionava o par, fazendo estalar os dedos, um a um. Em algumas já se impacientavam as canetas aguardando o momento de derramar a tinta sobre a verdade material do papel timbrado. Penso que vi também uma mão precocemente aberta e outra imperturbável face à comparticipação nos rendimentos patrimoniais ali pronunciados.

E houve um momento em que me cruzei, na minha marcha, com uma mão que se acercava para depositar na minha, involuntariamente disponível, um papel que comecei a ler, distraída: “Já fizeste parapente, asa delta, escalada…”. Eu ia subindo a rua, sem direcção precisa, distraindo-me em duas ou três frases que não retive e detendo-me finalmente no apelo “…vem ter connosco e viverás a experiência mais louca nas águas do Tejo”. Reparei no título “Emoções Fortes” e, já no escritório, quando a urgência de um encontro veio pelo telefone – tinha de ser para dali a meia hora, no máximo – disse ao gerente que descontasse uma manhã às minhas férias e apressei-me para o café onde a Lurdinhas me esperava, levando na mão o prospecto para lhe dar.

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