Sunday, September 28, 2008

Ficcionar 9. (invocando a razão)


Ou não. Efectivamente sucumbi a uma espécie de providencialismo literário. Tinha-te dito que não acrescentasses finais felizes à história; contudo és sempre livre para ir acrescentando e retirando pois a concepção prévia dos caminhos não elimina entroncamentos.
Vi que paraste a meio, julgo que para pensar a sequência da narrativa. Ou para integrar os pormenores. Da primeira vez que se ouve a história fixam-se as ideias principais e omite-se ou julga-se omitir o secundário. Mas as coisas menos importantes têm muitas vezes papéis determinantes.
Quando ela me fez o relato também eu retive apenas o essencial, como ouvinte.
E é normal que, no desenrolar da história, haja sempre detalhes a omitir. Faremos funcionar, neste ponto, a figura da permuta: ficam na escrita as verdades possíveis e na memória o travo doce das sensações. Porém o jogo está montado e o leitor pode, também ele, trocar os dados e convencer-se de que ela testemunhou a devoção quando parou emocionada observando os homens ajoelhados em celebração do momento sagrado. Ao mesmo tempo as mulheres faziam fila em todas as ruas, abastecendo-se de doces para a festa. Não me perguntes se ela entendeu ou se julgou entender. A verdade é que o encanto assumia todas as facetas das histórias das mil e uma noites.
Não me parece já possível a inversão do fascínio, com leitor activo ou sem ele. Foi por isso que a ouvi invocar todos os deuses da descrença, ao mesmo tempo que pedia socorro à razão.
Mas não fales de compaixão. Ela sabia-se voluntária na teia das emoções. Foi deliberadamente que voltou ao lugar de todos os encantos.

4 comments:

mfc said...

E a vida é o momento, porque é a soma deles.

addiragram said...

O "lugar de todos os encantos"será, talvez, o ponto onde se condensam todas as nossas partes vivas...por viver.

Fatyly said...

Li e gostei:)

Claudia Sousa Dias said...

Agora fizeste-me lembrar "o deus das pequenas coisas" da Arundhati Roy quendo ela fala na importância das pequenas coisas porque "as grandes coisas ficam sempre por dizer...

:-)

CSD