Saturday, January 06, 2007

Vinte anos...

"Era forçoso que olhássemos na mesma direcção mas sem dúvida que nenhum de nós via o mesmo vento a bater, os toldos a voar, a areia escorregando e fugindo ."

Lídia Jorge, A Costa dos Murmúrios

Olhar na mesma direcção, sob um céu homogéneo, sem ver mais variações que não sejam as que a outra voz dita.
Falas, e toda a vida esvoaça, como se o mundo cantasse
e os cantos entoassem; em redor é tudo teu;

mas se a tua voz se cala, o canto do mundo cessa,
e fica a vida suspensa. E o silêncio é todo meu…
Murmurar que o tempo é eterno e nada mais interessa para além do círculo fechado sobre a resolução possível de todos os males. E ver cair a chuva na calçada ouvindo-lhe a melodia, ou sentir o gosto da língua do sol sobre a pele num dia de Inverno.
O renascer do tempo no rumor das veias.
Olhar na mesma direcção a colher sentidos; tatuá-los depois nos olhos e reduzir a visão ao imediatamente perfeito. Sem ter ainda percebido que o verdadeiro sentido das coisas é elas não terem sentido nenhum.
Sentir sobre a folhagem húmida o sopro de uma brisa salvadora e afiançar que o sol está ao alcance das mãos, como se todas as coisas do mundo passassem pela solução mágica da entrega, amor, promessa, verdade universal, esperança, certeza.
Tu estás aí, no lugar onde as palavras terminam
e se renova a magia do silêncio;
de costas para o tempo desafias a linguagem dos poemas
e acordas a poeira das noites;
tu estás aí, aqui,
na inquietação do corpo e no sabor das horas que hão-de vir…
Olhar na mesma direcção sem ter pressentido outra linha no horizonte, outra cor, outro som, outro mistério; sem ter percebido que o tempo cava distâncias, muda a rota nas agulhas, deixa traças nos tecidos e cheiro a mofo nas entranhas do desejo.
No lugar onde estás eu também estou,
num sonho ou num incêndio;
ávida, desperta e com as mãos em fogo, aqui me tens…
Não saber da escassez do paraíso, das altercações, das metas curtas, da luz frouxa dos amuos em dias longos.. Arrefecer depois a contra gosto e baixar os olhos.
Olhar persistentemente na mesma direcção – obrigação – e partilhar o sonho dos risos eternos das crianças ou querer também mantê-las tragicamente debaixo das asas a aninhar doçuras egoístas.

E o ser massacra, devasta, inquieta em permanência; debaixo da capa do bem estar desenham-se labirintos; o silêncio gasta-se e a inquietude das asas tece uma lentidão de segredos; desejam-se mistérios...
... mas já nada renasce
a não ser uma primavera hesitante... à procura de espaço.


Legenda - a verde: o que escrevi aos vinte anos;
- a preto: o que acabei de escrever.

Conclusão 1. O amor existe;
Conclusão 2. Não se pode rasgar o que está escrito;
Conclusão 3. Mesmo que se olhe na mesma direcção o que se vê nunca é o mesmo, a não ser ... aos 20 anos...
ou- reflectindo melhor sobre o que escrevi ontem e já era madrugada - nem aos vinte anos.


9 comments:

Fatyly said...

Não conheço o livro e fizeste um magnífico trabalho. Questionarmos factores em todas idades é o que eu chamo saber e aceitar "murmurando" a nossa evolução!
Gostei muito!
Beijos

~pi said...

pois, a palavra que se assemelha a "murmurar" é "sussurrar". ocorreu-me agora.

uma das palavras-chave da escrita no miolando.
cheia de interlúdios
segredos
mistérios.

dentro das palavras que menos se soam escondem-se mistérios...

beijo

mfc said...

O resultado é sempre diferente, pois o ponto de partida também é diferente!
Não há que lhe fazer!!

addiragram said...

A complexidade deste cântico a duas vozes deixa pouco espaço ao comentário capaz de lançar "achas para a fogueira".Diria apenas que olhar na mesma direcção não é mais do que o resultado do instante em que duas mentes se tocam.Nunca se poderá poderá olhar na mesma direcção sem, em simultâneo, pressentir a linha do horizonte. Mutualidade e alteridade, dois momentos de uma relaçãoque se procura dia a dia...
Parabéns pelo teu belo trabalho, reflexivo e de permanente elaboração.

ivamarle said...

essa capacidade de escrever sublimemente só podia ser inata;-)

Apesar de já conheceres, acho que tem muito a ver com o que dizes sobre algumas coisas, este poema do Vitor Matos e Sá:

FIDELIDADE

Nunca teremos tempo para olhar um rosto
Completamente; para ver a quem pertence
Todo o silêncio em que secaram as lágrimas.

(às vezes chorámos, tu e eu, apenas
para expulsar os abismos excessivos
nos olhos)

e para nada perdermos, entre as noites,
repartimos tudo: o pão e as febres, a solidão
e os filhos.

Mas nunca poderemos a brigar-nos
Um no outro (apenas) contra as coisas
que nos gastam e envelhecem devagar (sem destruírem).

Juntaram-se em nós muitos espelhos:
Por todos ficámos mais expostos
Menos nossos e impossíveis
De sermos um só rosto ao mesmo tempo
Virados para onde nos quisemos
E encontrámos.

E é fora de ti que vou buscar-te
Ou vens, até mim , de outras presenças:
Rosto colhido de entre as ruas
Apressadas – para dentro
Do meu sono ( e acordo, sem saber
O que fazem com o peso todo
Da noite contra o peito);

(...)

E me ajuda a arrumar,
Na alma, algumas dúvidas,
Queixas, ou até os gestos todos
Com que nunca estaremos juntos;


Ou quando baixamos os olhos devagar
Para a mesma tristeza pensativa,
Para as águas de sermos provisórios, vacilantes
No limiar de tudo à nossa volta e perto
(tão mal preparados para tanta intimidade);

(...)
e demoramos (por nada)
o bastante só
para irmos depois
mais dentro dos outros.

No entanto, só tu,
Dia após dia, assistes
Ao que dura em nós
Entre o beijo, a ruga,
O coração que bate
Mais fraco mas prepara
Um poema, um filho
A morte a que assistimos
Com uma surpresa igual, apenas,
Aquela em que nos vemos
Estranhamente vivos, solidários.

E o sangue é o mesmo em que se apoiam
Um no outro os corações sobressaltados.

Qual de nós, diz-me, era capaz
De encher com o outro o coração inteiro

O difícil não é chamar
A caminhos que vão por nossos pulsos
Os densos espaços dos desejos
E as águas por onde, como peixes, mergulhamos
Um no outro, examinando
O mesmo fundo.

O difícil inauguramo-lo
Quando, com os corpos desencontrados,
Partimos, por lábios, dedos, abismos
De onde nem sempre regressamos juntos.

O difícil é quando
Pelo teu sorriso os pensamentos vão
Como folhas sobre as águas entre margens
Invisíveis, e guardas
Entre as confissões sombrias
Dos dedos certos gestos ainda
Por decifrar (poupados, talvez,
Para mais um filho ou para
O noivo interrompido, enquanto
Noite após noite aumentavam
Teus seios insatisfeitos).

É muito pouco o que sabemos
Da rosa do movimento aberta
E circular nos rostos – e nem sempre é
Pelo amor que começamos...

Elipse said...

há mistérios em todas as palavras como há mistérios em todas as idades. Felizmente!
E há um em cada dois, quando estão juntos. Prescindir de SER é coisa que às vezes se faz e que depois se cobra... sempre!
Às vezes há momentos de harmonia... quem não os teve?! Sim, pirata, magnificamente definidos pela addiragram, lúcida, sempre.
"juntam-se em nós muitos espelhos..." é uma realidade tão bem expressa neste teu poeta eleito, Ivamarle... obrigada.

Elipse said...

... ainda assim...
é muito bom ter vinte anos e não saber mais nada além do possível ou previsível...

... said...

...
...
... E daqui a 20 anos ???
E pela manhã,ao acordar ... não é que o espelho matinal nos mostra tantas faces quantos os olhares ... ou as olheiras?
E no mesmo olhar, os reflexos não diferem de uma pupila para a outra ?...
Em simultâneos olhares, na mesma direcção, conjugamos e comungamos a percepção quando a linha do horizonte é traçada pelo coração ...
Depois, vem o deserto e o tempo fugindo em dunas marcadas na pele escapa-se, quase, sempre por mistérios aconchegados em apressados calendários ...

wind said...

Magnífico!:) beijos