Ali estava de novo com os olhos postos no tríptico. Se ao menos as duas senhoras roliças, de saia azul, afrouxassem o olhar vigilante, ele conseguiria aproximar-se do painel central para decifrar a expressão do náufrago, que também podia ser um prisioneiro, um morto ou a figura de proa de um barco alado pelas suas próprias mãos.
Parecia ter óculos. Mas não tinha braços e os olhos estavam fechados. E havia uma malha, tecida sobre o esgar da boca e uma folha manuscrita diante do rosto.
Olhou para trás. Já só estava uma das vigilantes, colocada ali mesmo ao lado do rosto encarquilhado de S. Jerónimo, que subalternizava o corpo de Cristo à lisura do crânio sobre a mesa. Voltou-se mais uma vez para o painel e concentrou toda a atenção no desespero das mãos a saírem do flanco de uma ave gôndola, cujas asas aprisionavam em vez de libertarem. Procurava entender, uma a uma, as tentações do eremita, misturadas numa amálgama de horrores onde nem o azul do céu transmitia sossego.A vigilante continuava imóvel, de mãos enlaçadas, só os olhos pequeninos guardavam a sala.
Saiu devagar, estonteado, de mãos nos bolsos, evitando o grupo de turistas. Tinha a sensação de estar submerso num lodo. Ainda olhou em volta com a impressão de estar a ser vigiado. Nas últimas semanas sentia-se a enlouquecer: em todos os olhos a acusação, em todos os lugares a perseguição. Um carro preto a rondar-lhe os passos, dia e noite, estacionado ao fundo da rua.
…
Voltou a entrar na sala semi-obscura do museu. O quadro atraía-o. Demorou-se ainda um pouco mais a olhar os painéis, mirando-os de todos os ângulos. Olhava outra vez as tentações, uma a uma.
Era o sofrimento o que mais o afligia. Ou a traição, por detrás do sofrimento. Sentia-se arrastado sobre um passadiço de madeiras frágeis sob as quais Inácio Ventura conspirava, assinando contratos em folhas sujas que o Silveira transportava nos dentes arreganhados. Serviam-lhe tentações dentro de bandejas e depois faziam-no cair da barca arrastada por demónios celestes, encavalitado no dorso escamudo de um peixe. Via germinar do ovo a ave que depois engolia as crias e era nessa altura que a matriz da culpa o abanava por dentro; mas quando desviava os olhos para o náufrago, identificando-se no desespero das mãos, compreendia que era ele que arrastava a barca de onde emergia a cabecita de uma criança, torturada pelo bico de uma ave despida. Até o apelo da luxúria, arrumado há muito na memória e na consciência, lhe ocorria agora. A punição tardara.
O manuscrito, junto ao náufrago, estava a ser uma obsessão. Podia estar ali escrita a salvação, um segredo proveniente de um lugar qualquer situado entre o céu e a terra, a indicação de um caminho possível, um contrato que ele só tinha de assinar, fosse com uma qualquer mão divina ou demoníaca, para que se abrisse o caminho certo.
O olhar das vigilantes era agora mais insistente. Ele evitava-o, cada vez mais próximo do quadro e da culpa. Malditas sentinelas, as duas ali muito aprumadas no seu papel a murmurarem condenações.
O Silveira tinha-lhe oferecido uma daquelas tentações, e ele cedera ao desejo mais singular de um homem, a construção perfeita, a obra acabada. E o que via, em resultado da sua ambição, era uma torre de Babel aberta em ruínas, rebrilhando nela um Cristo crucificado. Um apelo, no desembocar do fio de luz, que nada lhe dizia. Nunca fora homem de crenças. S. Jerónimo já tinha deixado em plano secundário o símbolo, assentando o seu olhar nos livros e naquele crânio despido.
Sentiu uma náusea. Tinha rodado os olhos mais uma vez, sob o efeito da presença das vigilantes. À sua esquerda viu, exposta num prato e imersa numa cinta de sangue, a cabeça de S. João Baptista.
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5 months ago
10 comments:
Visualizando tudo.
Magnífico!
beijos
Sensacional!!!!!
As férias não te fizeram bem, nem mal.
Continuas a escrever lindamente!
Escreves muito bem. Parabéns. Espero voltar.
Traduzes aqui, como ninguém, a densidade de uma tela do Bosch.
Em frente de obra obra dele, é capaz de se estar uma hora e não se descobre tudo o que ele quiz dizer.
Nestas férias, tive o privilégio de observar ao vivo um dos mais célebres trabalhos do pintor e senti a frustração de ter de passar rapidamente por ali, já que estava incluido numa daquelas manadas de turustas que se desloca, a trote, de um lado para outro.
O princípio de um romance? Quase diria que sim... Parabéns!
Escrita que nos "amarra"...
Abraço
Gostei do texto, mas não posso dizer o mesmo do quadro. Apesar de reconhecer Bosch como tendo sido um muito bom pintor, e ter inclusivé livros com a obra dele, não posso dizer que goste do seu trabalho.
.......gosto dos teus quadros....... raios, gosto mesmo.....
Beijinhos e noite serena
Gostei muito do texto.
É, para além disso, um dos meus espaços favoritos em Lisboa.
Fiquei com vontade de ler mais...
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