Do que ele tinha medo era do poço das palavras dela. Não queria escutá-la por muito tempo por isso replicava e contrapunha, percebendo que precisava do confronto para não lhe dar espaço. Sabia que ganhava nos argumentos, treinados desde o berço ou desde a definição dos genes. Habituou-se, pois, a ficar à tona, mas temia-lhe a dimensão do olhar mesmo em silêncio. Nunca se questionou se fugia, mas não devia ser de fuga o seu investimento pois sabia-se empreendedor e adaptável, obstinado nas metas.
Ela habituou-se a calar as respostas, fechada no desagrado até se diminuir no espaço. Enleava-se numa pequenez quase assumida, mas só por fora ou só para fora, segura que estava da sua solidez feita sobranceria. Mas disfarçada. Podia ser a sua forma de agressão, o seu ataque mudo. Ou a sua maneira de inventar o desafio do amor encaixando-o na figura ali presente. Ou uma forma de amor tornada posse, ou certeza de permanência na interacção da discórdia.
Na cama fingia dormir, enquanto ele soprava o desespero.
Dizia que o amava.
Atenta às variações confessadas do amor, tentei saber de que era feito esse sentimento que parecia um afecto envenenado. Percebi então que o medo é construtivo: temia o abandono e por isso abandonava, querendo possuir. Antes da ausência imposta já ela não estava lá, sendo a primeira a desobrigar-se.
Construção estranha mas funcional, pelo menos enquanto o hábito não se tornou insuportável ao mecanismo do convívio diário.
A verdade é que todos os hábitos enfermam desta mesma característica, mesmo quando as variações do amor são estáveis.
13 comments:
Jamais conseguiria pôr no papel essa realidade e descreveste fabulosamente bem!
Parabéns escritora e um grande beijo sincero!
O medo não é construtivo.
A entrega, sim!
O medo é o único vencedor das ligações "estáveis"
Muito boa e realíssima prosa, tal e qual a vida, sem tirar, nem pôr.
Good:)
beijos
Ola Elipse!
Brilhante! Poucas pessaoas conseguem com tão poucas palavras fazer a autopsia detalhada de uma realidade tão complexa! A isso chama-se talento...
Bjico
quando os hábitos começam a preencher um alheamento de nós mesmos, um existir, sem SER e na nossa demência, inventamos uma redoma que nos proteja do medo, então já não vivemos...
Com este texto respondes ao que eu "perguntei" no comentário ao texto anterior. Não é que não haja palavras para expressar o que queremos, mas somos nós por vezes que não as sabemos uzar. Isso não passa de maneira nenhuma contigo. Texto fantástico.
os hábitos
os venenos que crescem insidiosos
nos medos
Estou mortinha que saia o livro de alguns autores aqui da blogoesfera!
Porque são, defacto, muito, bons ao contrário da mediocridade de algumas obras que estão por aí à venda em todas as livrarias...
Tu é de facto, uma dos tais tesouros literários escondidos...
Um beijo
CSD
Obrigado por ter ido buscar a Tamara. E por ter descascado a minha vida tb. Bjs
aqui é tudo ficção, carlos. obedeço à forma das palavras.
Não é ficção, Elipse. Antes pelo contrário: é poesia. E nada há que seja tão verdadeiro como a poesia. Mesmo que a tal verdade fique elíptica... Mas esta é a única verdade que se consegue alcançar.
Também concordo que não é só ficção.É também realidade.O dissecar dos afectos doentes.
E Qual será o caminho a seguir para uma situação destas?
É que por acaso conheço alguém com um problema parecido...
CSD
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