Wednesday, January 02, 2013

ruínas





Na prática eu apenas tardo diante das letras impressas
Apenas ou ainda, o difícil é saber
E não é por desamor ou por inércia
É talvez porque me guia a proporção das coisas.
E a inquietação antiga do querer e do não querer.

Folheio as palavras e verto-as depois. E bebo-as;
Sirvo-me delas para agitar a seiva nos meus dedos
E ao senti-las percorrer todos os lados do meu corpo
Detenho-me na sede satisfeita
E deixo sair das mãos desenhos e segredos

Seguindo a direcção das minhas mãos abertas
Componho, em letras fáceis, os degraus do meu prazer.
E em dias cheios de planos destruídos
É este o único amor a que me rendo.
A única cedência que acabo por fazer.




Tuesday, January 01, 2013

Agasalhos de uma só estação






Vesti um agasalho quando os dias eram frios.
Não, não mo deram a vestir; era meu da raiz ao topo porque o fiz nascer de dentro da terra e nele me envolvi, preparando-me para ver passar as estações.
Agasalhada, ergui-me robusta, na vertical; depois lancei braços e disse ao céu que o azul era pouco.
Lá onde chegavam ao fim as minhas folhas era como se um sorriso se soltasse de cada dedo; e cada dedo agarrasse o infinito.

Entretanto o chão floriu à minha volta e era ao verde que me rendia todas as manhãs, depois do canto das aves ter cessado na placidez de cada entardecer.

E assim foi passando o tempo; digo-o agora, à distância; antes não o disse ou não dei por ele, de tão aconchegada na justeza da roupa; agora tenho frio.

Que sucedeu à capa com que me cobri?
Que frio é este, tão súbito, tão devasso, tão intenso?

São farrapos, estes restos de roupa velha.
Mas é estranho que tudo esteja ainda verde e eu gelada.

Dizem que, por baixo, há pele nova e que eu serei outra vez senhora do meu corpo.

Tenho frio.





Sunday, March 18, 2012

Cárcere

Foto de Elipse


Cárcere

Vindima de ilusões, composição filtrada.

E, para além dele, o céu pesado e a luz quase apagada.




Tuesday, February 07, 2012

Genocídios e afins


Eu disse que escrevia. E a inspiração não se extinguiu nem a ideia morreu.
O que se passa é que quaisquer palavras ou quaisquer linhas acabam por ir juntar-se à negra disposição que nos é inculcada pela conjuntura de austeridade que sopra dos lados do luteranismo alemão.
Como ela (1), estou plenamente convencida de que a líder espiritual europeia do momento enferma de um provincianismo conservador próprio da educação de Leste e de uma maneira de ser que pressupõe o ódio ao riso. E aqui só me ocorre uma frase de Umberto Eco sobre o riso, citando ele próprio a crença medieval que dizia que "o riso afasta o medo e sem medo não há fé" (2). Medo esse que se traduzia no afastamento de toda a espécie de vontade de saber. Como agora.
Carnavais são tradições a eliminar porque fazem rir; uns cêntimos a mais no bolso para uma noitada de copos é pecado; uma ambulância que faça o caminho para o hospital mais próximo, nem que seja a 50 km de distância por entre montes e vales, é um luxo a retirar do dia a dia; ir de transporte para o trabalho, dentro em breve será tão grave como esbanjar uns cobres num restaurante para comemorar mais um aniversário (ou menos um ano para a reforma, dependendo do ponto de vista). Isto para não falar na compra de um jornal para verificar os anúncios de emprego que não aparecem ou mesmo na compra de um livro para desanuviar um pouco, que a cabeça não aguenta tanta referência a crises, frios polares, sem abrigos a gelar na rua ou gente a matar-se em campos de futebol.
Isto tudo porque ontem ouvi dizer que foi imposto à Grécia o despedimento de mais uns milhares de funcionários públicos. Ou antes, o que eu ouvi foi que a Alemanha mandou matar mais quinze mil gregos. Não em campos de extermínio, mas à fome.


(1) Clara Ferreira Alves, "O fim do mundo num gemido", Expresso, 4/2/2012
(2) Umberto Eco, O Nome da Rosa.


Wednesday, November 09, 2011

Tempo

Foto de Elipse


Todo o passado fica sujeito a um inventário

E o futuro faz-nos reféns.

Sobra o passar dos dias, a sucessão das noites e a curva elíptica da translação da terra.


Tuesday, November 01, 2011

Preocupações

Faz parte do meu dia-a-dia falar das personagens da História aos mais jovens, fazendo também parte da profissão de fé não emitir juízos de valor.

Não é muito fácil evitá-los quando se trata de acontecimentos ainda recentes. Chamar carniceiro a um qualquer chefe militar persa ou louco a um imperador romano não ofende ninguém.

Pior é ter de ouvir aos mais jovens hinos de louvor a ditadores como se o discurso dos seus avós passasse ao presente sem pagar portagem.

O que lhes digo é que se Salazar voltasse eles não poderiam entrar na escola com as calças a cair pelo rabo. Depois falo-lhes do ditador e do enquadramento de massas que o regime determinou de forma a ter cidadãos moldados para o cumprimento dos deveres pátrios.


O meu problema é apenas um, neste momento: como vou poder ainda raciocinar em função dos meus valores?

Que dizer agora, quando comparo o período da primeira república com os últimos trinta anos… e as medidas do Estado Novo com as do actual governo?



Bem sei que a Europa é que comanda mas também o salazarismo teve o seu contexto europeu, nos seus inícios.


Assustei-me com o cheiro a militares nesta história da Grécia e disse para comigo: “a confusão vai engrossar!”



Tuesday, October 18, 2011

Discurso proferido em 27 de Abril de 1928, no acto da posse de Ministro das Finanças.

Agradeço a V. Exa. o convite que me fez para sobraçar a pasta das Finanças (...). Não tomaria, apesar de tudo, sobre mim esta pesada tarefa, se não tivesse a certeza de que ao menos poderia ser útil a minha acção, e de que estavam asseguradas as condições dum trabalho eficiente. (...)

Esse método de trabalho reduziu-se aos quatro pontos seguintes:

a)que cada Ministério se compromete a limitar e a organizar os seus serviços dentro da verba global que lhes seja atribuída pelo Ministério das Finanças;

b) que as medidas tomadas pelos vários Ministérios, com repercussão directa nas receitas ou despesas do Estado, serão previamente discutidas e ajustadas com o Ministério das Finanças;

c) que o Ministério das Finanças pode opor o seu «veto» a todos os aumentos de despesa corrente ou ordinária, e às despesas de fomento para que se não realizem as operações de crédito indispensáveis;

d) que o Ministério das Finanças se compromete a colaborar com os diferentes Ministérios nas medidas relativas a reduções de despesas ou arrecadação de receitas, para que se possam organizar, tanto quanto possível, segundo critérios uniformes.

Estes princípios rígidos, que vão orientar o trabalho comum, mostram a vontade decidida de regularizar por uma vez a nossa vida financeira e com ela a vida económica nacional. Debalde porém se esperaria que milagrosamente, por efeito de varinha mágica, mudassem as circunstâncias da vida portuguesa. Pouco mesmo se conseguiria se o País não estivesse disposto a todos os sacrifícios necessários (...) Eu o elucidarei sobre o caminho que penso trilhar, sobre os motivos e a significação de tudo que não seja claro de si próprio; ele terá sempre ao seu dispor todos os elementos necessários ao juízo da situação.

Sei muito bem o que quero e para onde vou, mas não se me exija que chegue ao fim em poucos meses. No mais, que o País estude, represente, reclame, discuta, mas que obedeça quando se chegar à altura de mandar.

(...)


Tuesday, October 11, 2011

Regresso



Foto de Elipse

Regresso sempre no outono

Quando o sol declina e a espuma se atravessa nas palavras…




Saturday, May 15, 2010

saltos em corrida

foto de Elipse

Era para evitar o precipício, nem que fosse no sonho mal dormido.

Acabei sentada no fio dos gumes.

Era para usar sapatos rasos e caminhar serena.

Acabei ofegante na inclinação do plano.

Era para deixar o registo de cada queda.

Sem memórias não podia ceder ao pudor ou estranhar as repetições.

Era para não forçar nada a não ser a salvação.

Arrastei todas as águas e todos os rochedos.

Ao ficcionar corria o risco de apagar as marcas escondendo-me nas páginas como se disfarçasse a identidade.

A consequência é morrer na vertigem por não saber dosear os momentos.



Monday, May 03, 2010

precipício

foto de Elipse

coragem e desafio ou apenas rumor de asa sem traçado de rumo nem fronteiras;

colina de viço e delito ou apenas natureza fulgurante em dia de primavera;

tinir de silêncios e melancolia de muitos lutos ou apenas lábios cerrados a pedir acordes novos;

poema novo ou talvez muito mais do que apenas solidões e ecos presos nas margens enquanto as águas correm no leito sem desvios;

tempo de hospedar no peito o sonho...

ou apenas tempo de partir...




Sunday, May 02, 2010

veio do mar...

foto de Elipse


Ele veio em sossego e ela, soterrada em esperas, abriu o espaço:

um firmamento onde escreverá todos os verbos.



Monday, April 12, 2010

O poema da dor

foto de Elipse



Trazes contigo toda a nostalgia e toda a dor e o meu entendimento ainda vive na penumbra.
Trazes a cruz dos dias e das noites e a mancha amarga da tristeza que os deuses não ouvem; o rastejo da flor esmagada e o pomar prematuramente seco, o dilúvio de uma chuva que secou na foz e a nuvem transfigurada do silêncio agredido.
Trazes contigo o medo e sobre ti o cardo maduro, as palavras da resignação e o porquê dos sentidos sempre acesos.
Transportas um penhasco roubado às marés vivas e uma espiral de pesadelos rubros, a lápide da força e a prudência dos segredos.
Migram em ti as asas e as penas, a folhagem primaveril e o pilar quebrado, a robustez da arquitrave e a triangulação por apagar.
Que serei eu face à variação devoradora do teu sentir? Que farei no terreno da fronteira com a dor?
Não sei se deveria ter entrado mas já me vi em aparição na encosta onde os cardos te ferem.
Serei caminho ou luz ou tão apenas mão encostada à tua.


Sunday, April 04, 2010

Universos vazios

foto de Elipse

Sedes antigas. Ou antes, nunca uma sede igual a esta, nunca uma ânsia a agigantar-se assim na corrente dos dias, nunca uma desordem tão perfeita.
Sedes muito amplas e muito antes de todas as coisas perderem o sentido e o reverso; sedes de espuma e terra e oceano e astros.
Como posso ignorar a narrativa se ela e só ela me traduz o nunca de todas as coisas, o silêncio-rosário a correr entre os dedos.
Evadindo-se o pulso e o pulsar, restam as folhas de papel e as pausas, umas e outras matéria do mesmo universo vazio.







Friday, April 02, 2010

Prisão

foto de Elipse

Teia da espera, teia do estar por estar.
Teia elíptica, ácida, áspera.

Coisa colada ao nome das coisas com fios de simulação.

Sacrifício de silêncio e baba, jogo solitário da memória.
Substância difusa, resguardo obscuro alinhado conta o estar.
Corola desfeita pelo sopro do tempo. Versão original de uma arte extinta.
Ardil sangrento sobre a sepultura de um cântico redentor.
Prisão.
Tecida pelo lado de dentro.

Friday, March 19, 2010

entre a mente e o coração

foto de Elipse

Gotejantes, as sílabas combinam-se
simétricas, vivas, renovadas
e sentam-se alinhadas, à beira do poema
pingos de tinta em tina de água limpa.
Jurei que lavaria as mãos e me sentaria
no degrau da espera sem ouvir o tempo
mas desejei sucumbir à emoção.



Sunday, March 07, 2010

Palavras (ainda) com chuva

foto de Elipse
Já se inclina para mim a melodia
embora o lastro pese ainda, trágico, incómodo, flagelante
e as palavras tenham chuva sobre as sílabas
dizem os poetas que as águas cantam os amores e correm calmas
mas nem sempre as janelas se abrem sobre os jardins;
às vezes o verso é demasiado profundo e cava
a própria natureza grita e as pedras rugem
a lembrar que abaixo há ainda a humana condição
e só depois a madrugada;
ou o uivo das folhas que o vento arrasta antes de derrubar as pontes
e só depois o regaço onde se curam as feridas.

Thursday, February 25, 2010

Regresso


Não me agradou que ela tivesse ficado assim a afundar-se no silêncio da folha em branco, mas não consegui que ultrapassasse o pasmo.
Perguntei-lhe vezes sem conta se as palavras lhe estavam a fugir. Que não, que era apenas o vómito.
Não percebi muito bem, mas não fiz mais perguntas. Aguardei apenas.
Passou quase um ano.
Trago-a agora de volta, depois de ter rejeitado a ideia de a recriar, de lhe dar outra forma e outra natureza; depois de resistir mesmo à tentação de a colocar noutro espaço.
É que ela é daqui.

Thursday, June 04, 2009

Perspectiva...


Buscar a chave em círculos e cercos
Fechar as margens e estancar o pranto, o pântano, o silêncio
consumado na pálpebra cerrada
Trancar as sílabas na perfeição do dia,
Enfrentar o íngreme nocturno
Esmagar a raiva, anular o verbo descarnado
desmembrado, vazio, áspero.
Chave. Lugar do fim.
Ou o princípio?

Monday, June 01, 2009

Batem-me à porta e eu estou sentada

Fotografia gentilmente cedida por

Batem-me à porta ao fim da tarde, sempre à mesma hora e eu não vou; sentada me contenho, apesar do sonho correr veloz até ao infinito e regressar ao quadrado gasto dos meus olhos, paredes brancas sem adornos e eu como flor plantada de raiz.
Batem-me à porta ao de leve, mesmo que o ferro toque o ferro, que os materiais ganham veludo quando lhes ordenamos o silêncio e ficamos presos na raiz dos pés e nas amarras de outros fios invisíveis que as paredes teceram no quadrado do silêncio.
Batem-me sempre à porta os fios das letras, com mão fechada em punhado de palavras e eu aguardo a noite, suspendo o ímpeto e fico sentada jogando as peças como se a vida fosse ainda a primeira onda no areal da manhã.
Batem-me à porta os caminhos de um mundo abraçado à vontade dos que podem partir e o fecho não descola da ferrugem do estar.

Wednesday, May 13, 2009

Vestidos de pedra

foto de Elipse

Demoro-me nas linhas das palavras, secas as letras, lento o rastejo.
Demoram-se-me os gestos, mais do que seria de esperar, na dimensão dos verdes e nos espectros que os enleiam. Ignoro os nomes das coisas e o texto enrola-se. Presença inútil a da música.
Petrificam-se as emoções; e a espuma dos sonhos, macilenta, térrea, despida de substância, é pedra igual.
Os ângulos dos dedos ferem a coragem; não há paz nem na sombra, nem nos claustros.
Roça a dor na demora dos gestos; fio de meada enleada, larva em casulo seco, veludo desbotado. Pedra.
Inquieta-se a lucidez, fermenta o rasgão no espelho, perde-se a semântica dos sentidos.








Tuesday, May 12, 2009

À espera...



Sentados em cadeiras de fundos gastos, em salas pouco arejadas onde os encostam às paredes para que aguardem, calados, a chegada do fim, os velhos fecham os olhos e viajam no tempo. É um movimento ao contrário; em meninos projectavam-se nos dias que estavam para vir, agora não há dias para além do dia; já não lhes importa que alguém venha, depois de terem lutado em vão para que alguém os levasse. Agora ouvem, em registo longínquo, as músicas encantadas dos dias antigos ou sentem discretamente os beijos, de tão distantes. Agora recuam à infância e esquecem o que se passou ontem. Agora, destapam apenas as extremidades de uma pele que se gastou no fazer das coisas e que se amaciou nos afagos. E a mão forte, longa de agarrar, não é mais do que a mão velha que aguarda, de olhos fechados, o passar do tempo.


Friday, May 01, 2009

espaços vazios

foto de Elipse

Há muito que os poemas deixaram as coreografias velhas
e as novas não se colam às palavras
ou as letras são poucas
ou o espaço cada vez mais amplo...



Saturday, April 04, 2009

O espelho de Narciso

foto de Elipse


Contemplava ainda e sempre a sua imagem
soberbo na ostentação da graça
centrado na dança circular das águas.
O mundo era apenas o espelho
e o reflexo.


Friday, April 03, 2009

Como Narciso

foto de Elipse
Eco estendia a sua sombra a proteger-lhe o corpo.
No retorno as águas devolviam-lhe a silhueta negra de todas as penas
E mais a pena de não ter vida.




Saturday, March 21, 2009

Venerando a divindade


Espero-te, ainda e sempre, no lugar dos mitos.


Para mim és água fresca em fim de tarde,

folha de hortelã, barro molhado;



Vejo-te por dentro das pálpebras

Coluna grega a dobrar-se em vénia graciosa.


Quando te penso invento a perfeição.



Sunday, March 15, 2009

Dias com luz

foto de Elipse
Pendem dos ramos cachos de folhas novas; chilreiam pássaros, despontam ervas, florescem trevos; os miúdos deslizam nas rodas dos patins em algazarra; um par de jovens alheia-se do mundo à sombra de uma árvore e os beijos crescem; e o céu é todo azul e cheira a verde.

Monday, March 09, 2009

A construção


Volto sempre à ideia das construções narrativas para tentar clarificar.
Dizia que vou buscar aos bolsos as histórias planas que aí colocara pela insignificância do dia, ou pela sua dimensão de esboços mal começados e que as vou enchendo de palavras como se enchesse de sentidos uma coisa sem forma, assim criando fingimentos sérios.
Digo ainda que podem ser histórias de partidas, histórias de alcançar rumos ou de feridas causadas pelo romper dos sonhos colados à pele. Histórias de desejo. Histórias com vento, escritas à vista do veleiro de que os olhos se apropriam num dia de verão à beira-mar. Histórias de projecção do ser no ser ou noutros seres cujas vidas se decalcaram no plano da minha rua ou noutros ainda que entram na janela do meu recordar sendo que tudo o que se recorda está em confusa arrumação numa arca de criações múltiplas. Por isso são sempre histórias.
Dizia que toda a ficção é a invenção da possibilidade de ser, o cruzamento de mundos alternativos com personagens a dobrar falas. E que assim se desenham nos relatos os gestos, as vozes, as intrigas e as soluções, mas sempre em histórias.
Digo ainda que recordar é sempre uma narrativa. E que para narrar se parte da selecção dos factos; e que a selecção muda todos os dias, a partir do que nos aconteceu ontem ou já hoje.
Que pode sobrar nesta construção narrativa que aqui exponho aos olhos dos outros?
A ficção. Para ser lida.
Nesse momento começa a outra construção porque só os outros olhos dão sentido às palavras quando delas se apropriam.

Friday, March 06, 2009

O reencontro


Depois o abraço, mas antes os dias empolgados da espera, após a coincidência.
E antes, muito antes, um tempo perdido na infância, há muitos, muitos anos.
No intervalo decorreu a vida.
As meninas encontraram-se e olharam-se nas rugas. Viram através delas o passar dos anos e contaram como foi. Ou antes, contaram pedacinhos de dias bons e dias maus que a memória não alberga mais do que uma parte do todo. Às vezes nem um traço. E, à distância, havia coisas difíceis de confirmar, talvez apenas construções ou desejos. Nunca se saberia. As fotos não comprovam mais do que aquele preciso momento e não se consegue ver nelas o sentir daqueles dias. Isso disseram-no elas, as meninas, à distância de muitos, muitos anos.
Sabes, amiga, o passado não vale mais do que o necessário para se perceber de onde viemos. E mesmo isso nem sempre é a verdade!

Para mim, a verdade foi o encanto de te ter de novo.

Thursday, February 26, 2009

Outono

Foto de Elipse


Foi um desafio lançado aqui. Tinha de partir do texto dado e escrever a réplica.


“O Outono chegou, húmido e frio; os jardins cobriram-se de uma cor de ferrugem, e as florestas negras, direitas como ferro, mancharam-se, aqui e além, de castanho; um vento molhado soprava, empurrando para o rio pequenos ramos cortados. Todas as manhãs, chegavam ao alpendre carros cheios de linho, puxados por cavalos macilentos.”
in Máximo Gorki, A Família Artamonov

Vinham num trotear desengonçado, eles e o mundo todo, queixosos de um cansaço sem sol, que homens e bichos sofrem da mesma privação, uns mais na alma e outros mais no corpo, quando a ferrugem cobre os jardins e o vento sopra molhado e fustiga o caminho que traz o rio às manhãs e as cobre de névoa.
E eu, sentada no alpendre, esperava a nesga de sol que me tirasse da letargia e me trouxesse as memórias. A garota pusera-me o xaile sobre as pernas e a bengala ao alcance da mão. Disse-me para não sair dali, que o chão estava escorregadio e o meu equilíbrio já conhecera melhores dias. Um lagarto entre as frinchas, pensava, enquanto esticava as pernas e olhava os troncos das árvores, direitas como ferro em desafio humilhante à minha curvatura.
Todas as manhãs a cor da ferrugem dos jardins me recordava a impossibilidade da renovação. Porque eu sabia, entre as muitas coisas que eles diziam que eu esquecia e perguntava repetidamente, eu sabia que havia um Outono que chegava húmido e frio e se instalava, teimoso, nos meus ossos deformados, empurrando para o rio pequenos ramos cortados à minha lucidez. E o que ficava era um esqueleto desarticulado, que me fazia repetir a pergunta todos os dias: e ele, a que horas chega?





Wednesday, February 18, 2009

Ainda a ficcionar 11. (nunca há fim)



Quando te pedi que escrevesses imaginei que trarias ao conhecimento a história da permanência de um verão. Uma história contra o tempo.
Fizeste mal em não continuar; nem sempre se tem a sorte ao alcance das mãos.
Como vês o inverno humedece as folhas de papel e, ao contrário da natureza que desabrocha em viço mal as chuvas recolhem, nas folhas húmidas as letras perdem-se.
O que te peço agora é que retomes a história onde a deixei; não te preocupes em voltar atrás, que isso não altera em nada o desenrolar dos factos.
Lembras-te? Eu dizia-te que ela regressava a casa mais inteira e foi exactamente aí que a narrativa perdeu a sequência. Ou fomos nós, tu e eu que não quisemos prosseguir o devaneio: eu porque a deixei retomar a rotina sem lhe pedir que voltasse, ao fim do dia, para me falar dos sentimentos; e tu porque te desviaste do essencial.
Por isso volta. Coloca-a agora a caminho de um lugar mais próximo, mais familiar, mesmo que isso te retire a possibilidade de relatar outras cores e outros aromas. A escrita não tem de viver do exótico; a vida passa-se aqui e agora; para quê teimar em voar para lugares tão distantes.
A vida, capta a vida!
Encontrei-a há dias e achei-a diferente, mas deve ser o efeito das roupas de inverno, sempre mais austeras, sempre mais escuras. Surpreendeu-me a dizer que se desejar muito o verão o tempo passa mais depressa e já não tem tempo para isso. Respondi-lhe que deve dar atenção à permanência. Concordou mas estava impaciente, tenho a certeza.
Ou não fôssemos nós, mulheres, a contradição.
Vamos trazê-la de novo?

Saturday, January 31, 2009

histórias


Chega sempre a casa desgastado e sem ânimo. Vale-lhe a imitação de um salário, no final do mês, embora não saiba por quanto tempo mais.
Ela diz-lhe que se aguente, que “andar ao papel” não desqualifica ninguém. A expressão é dele, que antes se tinha por trabalhador qualificado, quando a empresa tinha centenas de pessoas, bem pagas e com perspectivas seguras. Nunca se pensa que o mal nos pode atingir. Na verdade é bem melhor não pensar em nada para não se sofrer por antecipação.
Agora também a reciclagem pode vir a sofrer de falta de “matéria-prima”, a julgar pelo decréscimo das vendas, queixa-se. Até quando os míseros euros estipulados pelo salário mínimo?
Os filhos, em idade escolar, habituaram-se ao conforto e ao gasto fácil. Tudo é possível neste modelo consumista que as últimas décadas incentivaram. Além disso se os outros têm, por que é que nós não podemos ter em igual qualidade e quantidade? Não foi a igualdade proclamada há muitos anos e legitimada pelos modelos democráticos ocidentais?
Hoje chegou a casa ainda mais desolado. O desconsolo dos outros não é razão que anime, mas à porta de um estabelecimento onde acabara de fazer a recolha das embalagens, dois homens abordaram-no e perguntaram se sabia, se a empresa admitiria mais gente. Que tinham filhos pequenos e as mulheres desempregadas.

Depois chegou ela e disse que a fábrica tinha fechado.

Thursday, January 22, 2009

Simpatia

Um blog de ouro é demasiada responsabilidade para quem não dá sentido às palavras há tantos dias.
Obrigada Cláudia. Eu volto em breve.

Sunday, December 21, 2008

em Dezembro...

Foto de Elipse

Devastam-me os silêncios que atravessam as tardes de Dezembro
e a pressa com que o sol se põe quando aparece;

Afunda-me a luz crua da razão que traz o tempo e o projecta sobre árvores
de ramos completamente despidos e sem pássaros.

Antes me surpreendessem as noites mas nem isso;
nem tão pouco o reflexo no vidro da janela que não dá para lugar nenhum;

Contudo as manhãs prometem dias longos
ou é talvez o nada a convertê-los em intermináveis labirintos.






Sunday, November 30, 2008

entrando em Dezembro...

Tamara de Lempika

Não me dêem flores nem tecidos vermelhos.
As flores envelhecem em jarras depois do momento em que aqueceram as mãos.
As cores vivas alegram as noites e depois gelam, caídas pelo chão.

Antes não as ter …

Prefiro a realidade bruta das palavras, a cólera dos acentos agudizando a voz, o engaste da sílaba na frase espontânea, o gemido abraçado ao frio da madrugada, a banalidade que tilinta suave nos ouvidos, o murmúrio soprado sobre a luz de uma vela, o lugar-comum enraizado no espinho da inquietação ou o dizer acenado no instante da partida.
Não há flores que preencham os espaços gelados do silêncio.


Thursday, November 20, 2008

As cariátides (outra vez)


Sem cabeça seria apenas corpo;
corpo flexível, arrumado, curvo
corpo em movimento, girassol abrindo.

Sem cabeça não me deitaria fora
todos dias ao final da tarde
para no dia seguinte acordar fingindo.

Monday, November 17, 2008

Memórias vivas

Salvador Dali, Persistência da Memória

Só sei que a memória nunca se embaciou, nem nos dias mais turvos nem nas noites mais brancas; hora a hora afaguei as lembranças, mesmo as dos lugares mais pálidos ou as dos tempos mais azafamados. E foi no presente daqueles dias – os dias que hoje ainda respiram na penumbra – entre quartos vazios e o luar abandonado, que sorvi o luto, gota a gota, bebendo as pedras, arranhando as vísceras e sangrando o suficiente para saber que quando o tempo passa sobre as horas de todos os presentes, a alma, solta do peso, cola-se ao corpo e chama-lhe matéria fúnebre.
Só sei que já me curei do teu cheiro dentro das paredes e do rumor da tua presença nos degraus da minha casa. Quando falo de amor, se falo, recuo muito mais do que esperava e mesmo assim já não sei preencher espaços vazios. É como se falasse de uma história de outras personagens e a fechasse depois numa lombada descosida, bolorenta.
Só sei que já não é a mesma lua, a que se levanta do lado do jardim e depois sobe para o centro dos meus olhos que antes assustavam o silêncio frio das madrugadas. E há dias em que já não sei se era o teu perfil que eu esperava, ou os nós dos teus dedos a baterem ao de leve na janela da cozinha; ou se esperava o perfil do teu perfil.

Se pudesses voltar não haveria nada de meu que te aguardasse junto à porta, esse lugar onde demorei a perceber a verdade da tua ausência.
Se pudesses voltar eu não voltaria a esse corpo que, sendo meu, me aleijava nos abraços; não voltaria ao silêncio amarfanhado das cedências e menos ainda ao desconforto das partidas.
Se pudesses voltar eu diria que te inventei; porque sempre inventamos a perfeição.

Saturday, November 01, 2008

Sol de Outono

Foto de Elipse

Pego em todos os poemas do mundo e solto as rimas; pego depois nas rimas ouvindo-lhes a cinza; sopro-lhes tinta fresca e pego depois em mim, presa nos versos e digo alto a dor que finjo sentindo-lhe os dentes ácidos quando o gelo se espalha pelas ruas ao fim da tarde.

Digo também das mil sílabas que li nos livros enquanto cessava o canto, noite dentro; e do desejo descarnado que costumava rimar com harmonia para poder, disfarçado, agredir-me no silêncio e deitar-me neve sobre as mãos.

Tenho poetas presos às páginas, guardados nas estantes; prendo-lhes as palavras junto aos afagos, mesmo as mais duras ou as que vestem de luto, por precisarem da doçura das mãos quando a noite começa.

Prendo as palavras que o vento teimosamente me retira e me atira, agitando-me a firmeza contra a torrente dos dedos, quando os dedos querem escrever o que a tristeza sopra para dentro da voz calada.

Modifico depois os registos e refaço; varro lamentos, renovo a tinta, acrescento-me de ousadas virtudes e se calo é porque nem todas as rimas podem ser sopradas pelos ventos. Por isso afago-as em palavras novas e pinto o sol em todas as manhãs.




Monday, October 27, 2008

Claro/Escuro

Foto de Elipse



Leio no céu o apelo, quase sempre
Indiferente às vozes de quem passa
Basta-me, agora, saber por onde vou.
Entre o preconceito e a asas
Resolvo a dimensão dos dramas
Dando passos certeiros
Ante a perplexidade dos que não ousam.
Dói-me apenas a pequenez dos dias
E a obrigação de colher frutos verdes.








Wednesday, October 22, 2008

A escrita e os símbolos

Escher

O exercício da escrita tem de ser um exercício de prazer. Podemos senti-lo como fonte de maior ou menor sofrimento se nos centramos nos nossos dramas ou nas nossas dores. Mas isso seria demasiada exposição trazida aqui a um lugar visível.
Criamos, então, personagens vivas e falamos por elas. Personagens que não se aclimatam ao normal curso do tempo e declinam com o voar das folhas secas; ou que se atrevem a desafiar a modorra estival gritando sobre a extensão dos mares; ou que se aconchegam, saídas do tempo, em pequenos nadas que transformam em grandezas de encher vaidades.
Neste acto criativo usam-se as palavras em jogos se sentimento e culpa; em distracções de bem-estar e anseio; em exercícios de representação do que não foi mas podia ter sido; em projecções dos nossos desejos ou dos desejos dos outros, já que os adoptamos e adaptamos.
Na Elipse há dois centros, nunca se sabendo qual dos dois corresponde ao que está para além do ficcionar. Ou o que fica aquém e ela converte em linha que se curva, certinha, sobre um e outro foco. Nada se pode colar à fidelidade do que aconteceu. Tudo símbolos.
Aqui o exercício da escrita é prazer puro.





Saturday, October 18, 2008

Enquanto os deuses proibiam o prazer

Blue nude - Picaso


Sei que não me alcanças as palavras
por mais que eu conjugue o verbo, ou diga os ecos das últimas sílabas;
Nem eu te alcanço o pensamento
aprisionado no silêncio dos cigarros fumados no quarto;
Difícil entrar nessa calma acesa e arredondar o espanto.
Difícil amansar os gumes da interdição sem magoar a crença.
Podíamos colocar as palavras sobre a mesa
correndo o risco de as deixar para sempre inacessíveis
Mas fizemos levedar os gestos.
Tocavas-me ao de leve, amedrontado ainda
e os olhos iam serenando na entrega
depois das ondas rebentarem no desenho do teu peito

Tuesday, October 14, 2008

Cantata de Outono

foto de Elipse

Não é por não te ter… é mais pelo castanho-claro das folhas que o vento empurra pelas ruas e pelo calor húmido que o ar carrega entre portas, onde o sossego exagera de tanto ser por fora e a inquietação por dentro.

Não é por não te ter… é mais pela crueldade diária do espelho matinal; pelo pó que se acumula na parte superior dos livros fechados, nas estantes; pela marca dos passos no mármore do chão; pela tinta que se vai gastando de tanto esconder o branco dos cabelos.

Não é por não te ter… que ter-te seria um excesso a todas as horas, não sobrando espaço para o sossego discreto que me aplaude a criação, de vez em quando.

Não é por isso, não. É pelo espaço reproduzido no vazio, pelas horas que o relógio multiplica, pela constância do silêncio a prolongar-se na mesma direcção, pelo sentido obtuso do riso unilateral, pela música sem eco no canto da sala cansada da cor dos móveis, pelo excesso de sossego em vez da festa, pelo desejo mal arrumado no canteiro adiado das sementes, pelos laços desfeitos nos presentes que ficam nas montras, pelas palavras que ditas seriam ouro e escritas ganham um peso inútil.

Não é por isso, não. Ter-te, à distância, seria ter ainda alguma coisa e mais a esperança de não definhar calada.

Friday, October 10, 2008

Culto muito antigo

Da primeira vez louvei-te os olhos
Se te lembrares ainda soa a minha voz surpresa
Ante a frieza aparente do teu rosto;

Mais tarde apreciei-te a divindade
Mas era em mim que morava a tentação;

Em ti nada sobrava; nada se deixava amar
Embora o fogo vivo dos silêncios
Chamasse o verso musicado do poema.




Saturday, October 04, 2008

Intervalo

foto de Elipse

Desinquietou-me o silêncio e a penumbra dos meses frios.

Ocupou-me o pensamento, severamente gasto em coisas inúteis como a tristeza.

Aconchegou-se a mim, ou fui mais eu, saída da sombra, em busca do tempo que ficou atrás das ousadias.

Por momentos fechei a porta ao mundo e deixei adensar-se a névoa dos incensos.

Olhos nos olhos, tínhamos o corpo todo à espera e o fascínio triunfava.

Tuesday, September 30, 2008

Ficcionar 10. (chegando ao fim)

foto de Elipse

Agora escreve.
Já te dei as referências, já te transmiti as partes da história que ela achou por bem contar-me. Tudo o resto cabe agora na arte de ficcionar e essa não conhece limites. Tu, que não a viveste nem a ouviste da sua boca, nem lhe viste o brilho dos olhos ao contar, és livre para lhe acrescentar todas as palavras.
O leitor nunca te pedirá explicações; deixar-lhe-ás o espaço necessário à sua própria construção. Porque há diferença entre o que se antecipa e o que depois se vive; entre o que se vive e o que se relata; entre o que se relata e o que depois de escreve.
Toda a verdade tem inúmeras facetas e, mesmo ficcionando, ela não perde o seu estatuto. Pelo menos para o leitor, que vê nas palavras o relato dos seus desejos menos confessáveis.
O leitor não relata, absorve. E encena a história, envolvendo-se nela. Por isso ouve os motores do avião, recolhe a bagagem à chegada, toma o pequeno almoço sentado de frente para a piscina do hotel, fuma cigarros nas esplanadas da grande avenida, descobre-se debaixo de um céu que é o mesmo mas outro e ouve a música curva mais uma vez, e outra e outra, até desejar que não haja mais mundo senão aquele que começa e acaba ali. Comprova a importância do desejo, este leitor atento que entra pelas palavras do texto e escreve a sequência narrativa. Quando escreveres não o deixes desviar desse prazer.
Ele perguntará, no fim, qual foi o fim?
Não lho dirás.
Deixa só escrito que ela cumpriu todos os seus desejos. E que não chorou na despedida. E que partiu sorrindo, regressando mais inteira ao chão real da vida.


Sunday, September 28, 2008

Ficcionar 9. (invocando a razão)


Ou não. Efectivamente sucumbi a uma espécie de providencialismo literário. Tinha-te dito que não acrescentasses finais felizes à história; contudo és sempre livre para ir acrescentando e retirando pois a concepção prévia dos caminhos não elimina entroncamentos.
Vi que paraste a meio, julgo que para pensar a sequência da narrativa. Ou para integrar os pormenores. Da primeira vez que se ouve a história fixam-se as ideias principais e omite-se ou julga-se omitir o secundário. Mas as coisas menos importantes têm muitas vezes papéis determinantes.
Quando ela me fez o relato também eu retive apenas o essencial, como ouvinte.
E é normal que, no desenrolar da história, haja sempre detalhes a omitir. Faremos funcionar, neste ponto, a figura da permuta: ficam na escrita as verdades possíveis e na memória o travo doce das sensações. Porém o jogo está montado e o leitor pode, também ele, trocar os dados e convencer-se de que ela testemunhou a devoção quando parou emocionada observando os homens ajoelhados em celebração do momento sagrado. Ao mesmo tempo as mulheres faziam fila em todas as ruas, abastecendo-se de doces para a festa. Não me perguntes se ela entendeu ou se julgou entender. A verdade é que o encanto assumia todas as facetas das histórias das mil e uma noites.
Não me parece já possível a inversão do fascínio, com leitor activo ou sem ele. Foi por isso que a ouvi invocar todos os deuses da descrença, ao mesmo tempo que pedia socorro à razão.
Mas não fales de compaixão. Ela sabia-se voluntária na teia das emoções. Foi deliberadamente que voltou ao lugar de todos os encantos.

Monday, September 15, 2008

Ficcionar 8. (reflectido sobre as analogias)

Magritte



Como vês, a felicidade acaba pincelada a cor-de-rosa e enfastia quem lê. Evitaste as cenas dramáticas ou conseguiste convertê-las em alguma coisa assim-assim, mas não te esqueças que a literatura não vive de amores completos, de vidas preenchidas e de recompensas. Ficciona-se sobre os textos vividos mas também se inventam vidas; depois talha-se e retalha-se a estrutura dos pedaços para construir o todo e escreve-se.
Ainda bem que evitaste os diálogos; também a mim me aborrecem as páginas das falas inconsequentes das personagens, em conversas de encher. Não concebo o romance linear, que começa certinho e acaba sem nódoas. Toda a sequência implica encadeamentos e alternâncias e a presença do narrador não pode ser um limite; se estiver muito presente tende a adjectivar, quando não mesmo a ajuizar, destruindo as possibilidades do leitor.

Nesta história a protagonista estava limitada pelas margens, as do espaço mas também as do tempo e nenhuma ousadia atrasaria os ponteiros do relógio. Mas o contrário é também válido porque se as possibilidades do real são inúmeras as da ficção não se esgotam.
Podes não ter clarificado tudo, podes ter deixado ao leitor a possibilidade de construir cenários, mas isso não impede que o final tenha de ser o que inicialmente estava previsto. Porque quando se começa a escrever uma história, inevitavelmente já se sabe o seu final.
Doutra forma a literatura seria igual à vida.