Sunday, November 30, 2008

entrando em Dezembro...

Tamara de Lempika

Não me dêem flores nem tecidos vermelhos.
As flores envelhecem em jarras depois do momento em que aqueceram as mãos.
As cores vivas alegram as noites e depois gelam, caídas pelo chão.

Antes não as ter …

Prefiro a realidade bruta das palavras, a cólera dos acentos agudizando a voz, o engaste da sílaba na frase espontânea, o gemido abraçado ao frio da madrugada, a banalidade que tilinta suave nos ouvidos, o murmúrio soprado sobre a luz de uma vela, o lugar-comum enraizado no espinho da inquietação ou o dizer acenado no instante da partida.
Não há flores que preencham os espaços gelados do silêncio.


Thursday, November 20, 2008

As cariátides (outra vez)


Sem cabeça seria apenas corpo;
corpo flexível, arrumado, curvo
corpo em movimento, girassol abrindo.

Sem cabeça não me deitaria fora
todos dias ao final da tarde
para no dia seguinte acordar fingindo.

Monday, November 17, 2008

Memórias vivas

Salvador Dali, Persistência da Memória

Só sei que a memória nunca se embaciou, nem nos dias mais turvos nem nas noites mais brancas; hora a hora afaguei as lembranças, mesmo as dos lugares mais pálidos ou as dos tempos mais azafamados. E foi no presente daqueles dias – os dias que hoje ainda respiram na penumbra – entre quartos vazios e o luar abandonado, que sorvi o luto, gota a gota, bebendo as pedras, arranhando as vísceras e sangrando o suficiente para saber que quando o tempo passa sobre as horas de todos os presentes, a alma, solta do peso, cola-se ao corpo e chama-lhe matéria fúnebre.
Só sei que já me curei do teu cheiro dentro das paredes e do rumor da tua presença nos degraus da minha casa. Quando falo de amor, se falo, recuo muito mais do que esperava e mesmo assim já não sei preencher espaços vazios. É como se falasse de uma história de outras personagens e a fechasse depois numa lombada descosida, bolorenta.
Só sei que já não é a mesma lua, a que se levanta do lado do jardim e depois sobe para o centro dos meus olhos que antes assustavam o silêncio frio das madrugadas. E há dias em que já não sei se era o teu perfil que eu esperava, ou os nós dos teus dedos a baterem ao de leve na janela da cozinha; ou se esperava o perfil do teu perfil.

Se pudesses voltar não haveria nada de meu que te aguardasse junto à porta, esse lugar onde demorei a perceber a verdade da tua ausência.
Se pudesses voltar eu não voltaria a esse corpo que, sendo meu, me aleijava nos abraços; não voltaria ao silêncio amarfanhado das cedências e menos ainda ao desconforto das partidas.
Se pudesses voltar eu diria que te inventei; porque sempre inventamos a perfeição.

Saturday, November 01, 2008

Sol de Outono

Foto de Elipse

Pego em todos os poemas do mundo e solto as rimas; pego depois nas rimas ouvindo-lhes a cinza; sopro-lhes tinta fresca e pego depois em mim, presa nos versos e digo alto a dor que finjo sentindo-lhe os dentes ácidos quando o gelo se espalha pelas ruas ao fim da tarde.

Digo também das mil sílabas que li nos livros enquanto cessava o canto, noite dentro; e do desejo descarnado que costumava rimar com harmonia para poder, disfarçado, agredir-me no silêncio e deitar-me neve sobre as mãos.

Tenho poetas presos às páginas, guardados nas estantes; prendo-lhes as palavras junto aos afagos, mesmo as mais duras ou as que vestem de luto, por precisarem da doçura das mãos quando a noite começa.

Prendo as palavras que o vento teimosamente me retira e me atira, agitando-me a firmeza contra a torrente dos dedos, quando os dedos querem escrever o que a tristeza sopra para dentro da voz calada.

Modifico depois os registos e refaço; varro lamentos, renovo a tinta, acrescento-me de ousadas virtudes e se calo é porque nem todas as rimas podem ser sopradas pelos ventos. Por isso afago-as em palavras novas e pinto o sol em todas as manhãs.