Monday, November 17, 2008

Memórias vivas

Salvador Dali, Persistência da Memória

Só sei que a memória nunca se embaciou, nem nos dias mais turvos nem nas noites mais brancas; hora a hora afaguei as lembranças, mesmo as dos lugares mais pálidos ou as dos tempos mais azafamados. E foi no presente daqueles dias – os dias que hoje ainda respiram na penumbra – entre quartos vazios e o luar abandonado, que sorvi o luto, gota a gota, bebendo as pedras, arranhando as vísceras e sangrando o suficiente para saber que quando o tempo passa sobre as horas de todos os presentes, a alma, solta do peso, cola-se ao corpo e chama-lhe matéria fúnebre.
Só sei que já me curei do teu cheiro dentro das paredes e do rumor da tua presença nos degraus da minha casa. Quando falo de amor, se falo, recuo muito mais do que esperava e mesmo assim já não sei preencher espaços vazios. É como se falasse de uma história de outras personagens e a fechasse depois numa lombada descosida, bolorenta.
Só sei que já não é a mesma lua, a que se levanta do lado do jardim e depois sobe para o centro dos meus olhos que antes assustavam o silêncio frio das madrugadas. E há dias em que já não sei se era o teu perfil que eu esperava, ou os nós dos teus dedos a baterem ao de leve na janela da cozinha; ou se esperava o perfil do teu perfil.

Se pudesses voltar não haveria nada de meu que te aguardasse junto à porta, esse lugar onde demorei a perceber a verdade da tua ausência.
Se pudesses voltar eu não voltaria a esse corpo que, sendo meu, me aleijava nos abraços; não voltaria ao silêncio amarfanhado das cedências e menos ainda ao desconforto das partidas.
Se pudesses voltar eu diria que te inventei; porque sempre inventamos a perfeição.

8 comments:

Mar Arável said...

Estamos sempre a partir

e achegar

Fatyly said...

...e de facto ninguém é perfeito.

Anonymous said...

o sofrimento, a dor apuram a nossa
sensibilidade

mfc said...

É pena que a perfeição não se repita.
Mas é mais pena ainda, que ela nem chegue a acontecer.

addiragram said...

Sempre desconfiei da perfeição.Ela é totalitária e mentirosa.
A maravilhosa imperfeição agrada-me de sobremaneira.Dela digo que é "perfeita".
O texto está, como sempre, muito bem (d)escrito!

Claudia Sousa Dias said...

"sempre inventamos a perfeição"...que não existe no Outro.


CSd

encantos said...

Desejo muita Felicidade para o Ano de 2009... que nao vai ter tantas crises'''''
Que tenhamos então todos momentos bem melhores que os de 2008 .

...e boas memórias.

vieira calado said...

Andei por aqui a dar uma volta, depois de longa ausência.

Gostei do que li e vi.


Cumprimentos meus