Tuesday, May 29, 2007

Não estejas triste...


Não estejas triste, a vida não parou para ninguém
Ou antes, vive a tristeza por um dia e depois canta
Vês lá ao fundo o rio?
Ele tem margens e vai revolvendo o lodo velho
E, tu sabes, o mar que te espera é muito grande.

Eu também morri uma vez nas paredes de uma casa
E balancei-me depois num barco à deriva
Lembras-te dos tombos?
Amanhã não haverá mais vento a fustigar-te o rosto
Pelo menos a nortada vai aliviar. Tu sabes.

Saturday, May 26, 2007

pálpebras pesadas

quando eu nasci
escreveram-me nas pálpebras

um conjunto inteiro de mentiras
e devem ter-me dito

para não pestanejar

às vezes, à noite,
quando tento manter abertos os olhos
com medo da verdade
há uma montanha

pousada em cada pálpebra

e eu resisto
olhando a floração das madressilvas;
se fecho os olhos
vai-se o viço tenro das guias

que hão-de fazer-se troncos




Saturday, May 19, 2007

... o princípio da história

Ela e ele lançaram o desafio. Depois, aqui, enviaram-no directamente para mim. E eu respondi...

... mas para isso fui buscar ao arquivo este texto antigo, que pode servir de começo de uma história.

Tudo isto para dar continuidade a uma criação - O Livro dos Bons Princípios.


Tamara de Lempicka

Do que ele tinha medo era do poço das palavras dela. Não queria escutá-la por muito tempo por isso replicava e contrapunha, percebendo que precisava do confronto para não lhe dar espaço. Sabia que ganhava nos argumentos, treinados desde o berço ou desde a definição dos genes. Habituou-se, pois, a ficar à tona, mas temia-lhe a dimensão do olhar mesmo em silêncio. Nunca se questionou se fugia, mas não devia ser de fuga o seu investimento pois sabia-se empreendedor e adaptável, obstinado nas metas.

Ela habituou-se a calar as respostas, fechada no desagrado até se diminuir no espaço. Enleava-se numa pequenez quase assumida, mas só por fora ou só para fora, segura que estava da sua solidez feita sobranceria. Mas disfarçada. Podia ser a sua forma de agressão, o seu ataque mudo. Ou a sua maneira de inventar o desafio do amor encaixando-o na figura ali presente. Ou uma forma de amor tornada posse, ou certeza de permanência na interacção da discórdia.Na cama fingia dormir, enquanto ele soprava o desespero. Dizia que o amava.

Atenta às variações confessadas do amor, tentei saber de que era feito esse sentimento que parecia um afecto envenenado. Percebi então que o medo é construtivo: temia o abandono e por isso abandonava, querendo possuir. Antes da ausência imposta já ela não estava lá, sendo a primeira a desobrigar-se. Construção estranha mas funcional, pelo menos enquanto o hábito não se tornou insuportável ao mecanismo do convívio diário. A verdade é que todos os hábitos enfermam desta mesma característica, mesmo quando as variações do amor são estáveis.

antes da madrugada


antes da madrugada

os pássaros adormecem

e os morcegos

assustados

atiram-se contra as paredes brancas

deslizando

devagarinho

até ao chão.

Wednesday, May 16, 2007

é durante a madrugada que as folhas crescem


Já de madrugada vieram os pássaros em chilreios de despertar
Enquanto o sol se levantava e os olhos estranhavam a luz
Estava distraída a plantar uma tília
Com os dedos envolvidos no prazer da terra
E os sentidos todos concentrados na esperança de a ver crescer;

Para lá da porta conseguia ver-se o verão incendiando as planícies
Lume a fustigar a calma, fogo, ânsia, ave desabrida

Ouvi depois dizer que é devagar que as folhas desabrocham
Embora a esperança se converta em pressa
E queira ultrapassar o fim dos labirintos.

Wednesday, May 09, 2007

pormenores


pontas de fogo em caules frágeis dia-sim-dia-não
pode ser pouco
mas quando o tempo cai sobre as vontades esmagadas
(des)arruma-se a vida
e ofende-se com a esperança dos olhos,
o brilho,
à superfície das águas;

por estes dias vi (des)focar-se a paisagem
e, debruçada sobre mim,
desenhei a vermelho um sol sobre os riscos das feridas.

Sunday, May 06, 2007

ligações difíceis

roubei a fotografia ao pé de meia


prendo as mãos na esperança
finco as unhas, despedaço-as nas ranhuras da pedra
o corpo teima, o corpo pesa;

cravo os olhos no céu, sem prece que ampare a subida
eu e a parede, ambas rudes no desejo
eu teimo, ela resiste;

entro no diálogo difícil dos elementos
sou parte da parte
e o todo escorrega-me nas mãos.
a pedra fica. não há dualidade.
desisto.

Saturday, May 05, 2007

se eu fosse...


A Ivamarle desafiou-me a revelar um pouco de mim:


Se eu fosse uma hora do dia, seria ... a madrugada
Se eu fosse um astro, seria ... uma estrela muito distante
Se eu fosse uma direcção, seria...o caminho bifurcado
Se eu fosse um móvel, seria ... uma secretária desarrumada
Se eu fosse um liquido, seria ... água do mar
Se eu fosse um pecado, seria ... a ira
Se eu fosse uma pedra, seria ... pedra de lioz
Se eu fosse uma árvore, seria ... um salgueiro
Se eu fosse uma fruta, seria ... um cacho de uvas
Se eu fosse uma flor, seria ... um narciso
Se eu fosse um clima, seria ... polar
Se eu fosse um instrumento musical, seria ... um piano
Se eu fosse um elemento, seria ... ar
Se eu fosse uma cor, seria ... verde
Se eu fosse um animal, seria ... uma garça
Se eu fosse um som, seria ... o vento (às vezes brisa, às vezes temporal)
Se eu fosse música, seria ... uma balada
Se eu fosse estilo musical, seria … clássica
Se eu fosse um sentimento, seria ... sensibilidade
Se eu fosse um livro, seria ... A Náusea
Se eu fosse uma comida, seria ... um gelado a derreter no prato
Se eu fosse um lugar, seria ... uma praia
Se eu fosse um gosto, seria ... agridoce
Se eu fosse um cheiro, seria ... lilás
Se eu fosse uma palavra, seria ... memória
Se eu fosse um verbo, seria ... aprender
Se eu fosse um objecto, seria ... um livro
Se eu fosse peça de roupa, seria ... uma écharpe
Se eu fosse parte do corpo, seria ... o cérebro
Se eu fosse expressão facial, seria ... a surpresa
Se eu fosse personagem de desenho animado, seria … ???
Se eu fosse filme, seria ... Magnólia
Se eu fosse forma, seria ... elíptica
Se eu fosse número, seria ... 5
Se eu fosse estação, seria ... primavera
Se eu fosse uma frase, seria ... todas as frases são fragmentos; eu quero as palavras todas