Tuesday, February 27, 2007

3. infância







lembro-me de quando pousava na mão o menino Jesus do presépio, guardado no cesto dos brinquedos, junto dos tachinhos e das bonecas de plástico; ficava a contemplar a figura despida colocando-me sob os poderes sagrados; lembro-me que às vezes o padre entrava na sala de aula, a meio da manhã e falava de pecados;
pecados?, não os sabia, não me pesavam; contudo a palavra foi ficando, inibindo a liberdade dos gestos em certos dias;
lembro-me de jogar ao prego na rua e de fazer covinhas para os berlindes, na terra; e de um baloiço pendurado na oliveira, à entrada a casa da avó; se me empurrassem com força chegava com os pés ao céu, mas não queria entrar no céu, só se ia para o céu quando se morria e eu tinha ainda que descobrir o que estava para além do fim da rua;
lá ao fundo havia um pinhal e tanto me intrigava o que havia depois do arvoredo; era o mundo, e eu, ansiosa, fechava os olhos; colocava na paisagem imaginada todos os restos das conversas que ouvia e tentava construi-lo a partir desses fragmentos.

Monday, February 26, 2007

2. casa






uma vez senti que ela respirava ao meu ritmo, que se entristeciam as paredes quando eu deixava deslizar as minhas costas e os braços caídos até ficar sentada nos mosaicos sem horizonte; uma vez os degraus inverteram-se e as telhas foram chão e o céu ficou à vista; uma vez senti devolver-se o grito quando o julgava abafado no canto mais distante das ruas que me levam todos os dias para me trazer de volta ao fim da tarde; uma vez fugi e levei comigo tesouros que depois devolvi ao lugar desenhado a quatro mãos, na esperança de renovar a esperança; uma vez fiquei aqui como se fosse para sempre no espaço crescente onde ressoa o eco de passos que partem;
lá fora há um jardim que floresce em cada Primavera e eu em cada Outono morro um pouco; e, no entanto, os olhos que passam detêm-se e contemplam a beleza.

Sunday, February 25, 2007

1. adolescência





deitávamo-nos sobre as ervas dos pinhais em caminhos por onde ninguém andava; prometíamos futuro entre sorrisos e mãos enleadas e os beijos eram ainda um simples roçar de lábios, de tão verdes; usávamos rimas pobres para escrever poemas de amor em cadernos alinhados ao sabor dos sonhos; era uma gramática de verbos intransitivos, a nossa; fáceis de pronunciar todas as palavras sob a frescura das copas nas tardes de verão; apetece-me comer o verde, dizia-te; e tu, sonhando ainda a um ritmo igual ao meu, sorrias e beijavas-me as mãos...

Thursday, February 22, 2007

já o sol desperta


Foi ela que forneceu a imagem e pediu um texto:


Pela calada da noite arde uma chama;
ou é pela chama que a noite se cala;
ou se deita a noite na chama, calada.
Seja como for, há sempre madrugada.
E é lá do outro lado da janela,
(já a noite finda, já o sol desperta
já a cama se cansou de estar à espera)
que o dia desponta e a esperança me engana.

Wednesday, February 21, 2007

Questões de tempo


Às vezes faltam-me as palavras; outras vezes, muitas vezes, ficam presas na garganta, à espera de voz que as pronuncie.

Sem voz é mais fácil porque elas saltam e soltam-se.

Por estes dias há uma palavra que me tem faltado – TEMPO – ou antes, não é a palavra mas o espaço para a pronunciar, sendo esse espaço uma coisa materializada na cadência dos ponteiros do relógio. É do tempo cronológico que falo. O outro, o que se mede em função de mim própria e dimensiona a minha realidade, costuma ser um fluxo continuamente instalado na memória a levar-me para trás; e depois traz-me de volta.

É essa a razão de me ter mantido entre a folhagem, relativamente escondida dos olhos alheios. Pelo menos aqui neste espaço, porque a realidade está virada de frente para mim e eu para ela. Seja então o dia um confronto.

E aqui estou articulando palavras escritas, ao som das teclas; dialogando com uma folha de papel virtual que amanhã se apresentará como real aos olhos de quem por aqui passa.

E vou, já de seguida, atrás dessa realidade que me faz fechar os olhos. Depois volto.

É claro que podia dizer apenas “até amanhã”, mas as palavras saltaram e eu não as travei.

Thursday, February 15, 2007

Palavrear



Esperava-te entre a folhagem ao entardecer
como quem espera a névoa
para entrar levemente
na fantasia das coisas perfeitas.



Tuesday, February 13, 2007

Fora de horas


Deito-me todos os dias fora de horas, mas sei que adormeço antes; talvez tenha perdido a noção da alternância entre a lucidez e a noite.
Adormeço de olhos abertos sobre a mesa onde os papéis descansam de mim. E assim fico, direita no eixo da vigília, até despertar das imagens ou dos desejos cada vez mais indefinidos, escondidos debaixo de algumas letras que repito desconexamente.
Mesmo em dias tempestuosos, transpirando sob o frio que gela a casa pelo lado de dentro, adormeço nos gestos e nos olhos ainda abertos mas sem noite que os faça descansar. As paredes são iguais todos os dias e eu, de olhos abertos sobre a mesa onde as folhas dos livros me rejeitam a vontade, forço contas de cabeça em volta de parcelas apagadas pelo tempo.
Deito-me todos os dias fora de horas e às vezes, de olhos abertos mas sem parar para pensar, dou comigo sem sentidos porque os perdi na busca de razões para que o mundo seja este girar contínuo de interesses que nunca são os que interessam, enquanto as pessoas se batem e se combatem por convicções que as viram de costas umas para as outras. E também se abatem na necessidade de confronto.
São poucas as horas do dia e é pouco o tempo para aquilo que verdadeiramente é importante, parecendo que a importância está nos argumentos da afirmação falível.
São poucos os dias em que não me deito fora de horas, fora de mim; e se o desejo permanece é porque se alimenta desta vontade de passar para além da realidade e negar aos olhos e ao entendimento a aproximação precoce do crepúsculo.
São poucos os dias em que permaneço inteira. Deito-me fora muito cedo e antes de cair a noite vou rebuscar as peças para me enformar mais uma vez, colando-me.

Monday, February 12, 2007

Valeu a pena

Claro que valeu a pena ter manifestado a minha posição e ter-me batido por ela.
Embora o país não seja um mas dois (vejam aqui), vá-se lá saber porquê (um dia destes escrevo sobre as explicações histórico-geográficas das diferenças), alguma coisa de positivo saíu deste folclore que foi o “antes”. Veremos agora como será o depois.

Apraz-me deixar apenas o registo desta afirmação que parece andar a par com aquilo que aqui tenho escrito. Ou eu a par com ela, porque seguramente sou menos importante que a senhora que a pronunciou. Mas somos ambas mulheres.

«A decisão de abortar é profundamente pessoal e privada e o Estado não deve impor uma moral»,disse a presidente das Mulheres Socialistas Europeias, Zita Gurmai, aqui.


E agora mudemos de assunto…

Tuesday, February 06, 2007

Claro que SIM...

... porque não sou marionette...

... não suporto que partidos políticos gastem o meu tempo e a minha paiência na defesa de uma posição que vem de dentro da minha consciência de cidadã e de mulher. E isto refere-se aos SINS e aos NÃOS, obviamente, que em campanha todos se valem dos seus argumentos e quando não os têm pedem-nos emprestados a outras organizações ou pseudo-não-sei-quê... que apetece embrulhar em papel de jornal e mandar para o lixo.

Há muito dinheiro envolvido numa coisa que mais se assemelha a um fait-divers, enquanto outras coisas vão sendo feitas e lançadas em letra de lei, sem que ninguém se apoquente muito.

Ah pois é... a próxima década vai ser de muito desemprego, de muita depressão (não, não é económica, que há por aí muita gente servida de sertralina, fluoxetina e outras "inas" nos bolsos), de muitas famílias desentendidas (casa em que não há pão... ), de muitas limitações às nossas liberdades (talvez não se pense muito nisso... logo se vê... e a ver vamos...)
Nem me apetecia voltar a mencionar o assunto aqui neste espaço. Mas há circunstâncias em que não percebo as pessoas...
... bem sei que tenho de aceitar e respeitar, mas ao menos que me apresentassem argumentos significativos. Como este ou este. Vale a pena ler estas "histórias" e reflectir.

Sou mulher e já vivi o suficiente para saber que há argumentos que não convencem ninguém. E antes de ser mulher sou um ser humano pensante e sou também muito ciosa da minha liberdade individual.

EU VOTO SIM ao direito de decidir sem ser punida por isso.

Friday, February 02, 2007

tropeçar nas letras


Tropeço em tapete gasto
Não é arte, não; é teimosia

Travo a queda
Solto a trova
Trago as trevas
Acho a trave

Atravesso a noite e canto
Euforia? Não. Repetição.

Travo o instante
Trago as trovas
Solto a arte
Mato o pranto

Poesia? Não. É fastio.

Troco as letras
Travo o choro
Solto o riso
Mato as trevas

Troco as letras, troco, toco, taco, travo, cravo, cavo... ...