Tuesday, January 30, 2007

entre as paredes pintadas a branco sujo

Van Gogh

Repito-me, repito-me…
Nasço todos os dias no mesmo lugar e giro em círculo. Nasço depois do sono, depois do sonho, depois das horas sonhadas para o repouso de tanta repetição. Nasço antes do desejo, todos os dias no mesmo lugar; e repito o movimento andando à pressa, que de pressa é feito o verso e o reverso deste andar à volta de mim mesma antes do desejo ou com ele a passo lento, a par comigo.
Repito-me passando por entre estas paredes pintadas a branco sujo depois do tempo passar sobre o dia do começo, dia de sonho e depois o sono a esconder a pouquidão do espaço, que de pouco é feito o estar aqui parada.
Repito-me sempre nas palavras; apenas as coloco de outra maneira para que o efeito não pareça repetir-se; mas o que nasce depois do sono e antes do sonho é um lugar escuro. Memória brava, encolhida à pressa e repetida nos degraus que subo e desço.
E se tropeço?

Friday, January 26, 2007

mulheres vs mulheres

Maria Amália Vaz de Carvalho, conhecida como educadora e autora de uma vasta obra onde aborda problemas da educação das crianças, constitui um exemplo da intelectualidade feminina do final do século XIX, princípio do século XX.
Quis, no entanto, cuidar também da educação das mulheres, a quem não reconhecia a legitimidade do direito ao voto. A mulher, dizia, deveria estar bem preparada intelectualmente a fim de se encontrar mais próxima do marido. Dizia-se, na época, que estas eram ideias feministas.
Atacava o divórcio “essa solução violenta ao problema do casamento – solução antipática às raças latinas”, defendendo a ideia de que a mulher se deve manter no estrito espaço do lar e de que a vida mundana é incompatível com o culto doméstico. Era uma católica fervorosa para quem o ensino tinha de ter também a vertente religiosa.

(informação colhida em Cecília Barreira, História das Nossas Avós)


Também conheço algumas assim, nos dias de hoje.
Defensoras da autonomia da mulher, praticantes de uma vida de luta férrea pela sobrevivência, instruídas, esclarecidas e ... obrigadas a fazer um aborto (ou um desmancho?) em alturas em que a vida não permitiu outra solução. Poucas terão sido as que nunca tiveram de passar pela dor.
Contudo, usando o argumento da defesa do direito à vida, vão votar não ao direito que uma mulher tem de interromper a gravidez até às 10 semanas nos casos expressos e conhecidos por todos os que quiserem informar-se devidamente sobre o que está em causa no referendo.
Eu, que também defendo o direito à vida, voto sim, a lembrar aquela a quem acompanhei à "abortadeira" e depois ao hospital, onde teve de submeter-se a uma cirurgia para lhe serem removidos os restos do embrião que ficaram a provocar uma hemorragia que quase lhe ceifou a vida. A mesma mulher que hoje, passados muitos anos, se ligou à igreja, onde passa os dias e as noites em tarefas de caridade (não lhe posso levar a mal por isso, cada um é livre de agir em conformidade com aquilo em que acredita) e defende o não com os dentes cerrados de raiva e uma expressão de quem era capaz de queimar na fogueira todas as votantes do sim.

Complicada, a mente feminina!


Sunday, January 21, 2007

"sol de inverno"


Foto e título gentilmente cedidos por Tinta Permanente


Prendem-se nos cabelos fios de espuma; e ficam, descolorando o fulgor das labutas antigas, agora em braçadas mais lentas.

Se estou cansada? Não me vês o cair dos braços? Mas ainda seguro a panela sobre as brasas e sopro. Prova! Prova que são boas!
Não me quero encostada à parede do fundo d’uma garagem à espera da morte. Nunca os viste? Basta que não possam mexer as pernas e zás, escondem-nos em buracos, fecham-nos a dizer que são lares aquelas caves húmidas. Antes a minha que é velha mas tenho lá nas gavetas a minha vida toda.

No início é um desejo quase lume que consome a precipitação tornando-a erro. Mas só depois a vista o descortina e o aponta; tarde demais e ainda bem. Se o futuro fosse uma tela transparente a emoção morria.

Tenho filhos mas eles têm a vida deles. Que mais dá? Não quero que me dêem ainda a sopa à boca, nem sei se dão, que a vida leva as pessoas para longe e a gente já não espera nada. Espera-se a morte, menina, espera-se a morte!

A meio caminho, quando as madrugadas acordam e chega a lucidez, intervalada pela cedência ponderada ou pelo ímpeto do desejo amadurecido, constroem-se as chegadas, calmamente. Compensação, às vezes; permuta consentida, diz depois a razão. Mas só depois.

Estou cansada, sim: aqui no ombro a dor ferra que nem cachorro bravo e formigam-me as mãos. O que me custa mais é não ter forças, senão começava tudo de novo... sei lá se fazia igual! A vida não escolhe a gente nem a gente a escolhe a ela e estes trapos pretos, já não sei bem por quem os visto... são muitos anos...

Tarde demais, diz a espuma nos fios dos cabelos encurtando o tempo e rindo-se do desejo. Compaixão e frio na placidez dos gestos, apesar do carvão aceso em dia de feira.

Thursday, January 18, 2007

a dor


(para a Vanessa e para a Catarina, que choram a morte do Bruno; e eu com elas...)

Ferra os ossos como um cão raivoso esta dor que se enterra no peito, nos olhos, na carne toda e arrepia a pele de cinzento e névoa. Névoa nos olhos e revolta nos dentes cerrados. Cinzento o dia, também; cinzenta a terra, gelada, pesada; cinzento o bater da pá contra a terra, a tapar a tapar…
Ferra os ossos como gume esta dor rubra, faca espetada no entendimento e a mãe sem sentidos de tanto a sentir na alma e nós ali sem forças nas pernas nem gestos nas mãos para dizer adeus; o mundo parado e lágrimas, lágrimas…
Ferra os ossos esta dor que apaga, uma a uma, todas as letras da palavra aceitar porque ontem ele tinha um sorriso nos olhos e agora fica ali sozinho, o dia a gelar a noite e a terra a cair cinzenta sobre os seus olhos fechados. E nós sem sabermos o caminho de regresso à vida.

Wednesday, January 17, 2007

à procura da perfeição


Hoje havia camélias caídas no chão do jardim
E eu, de olhos vendados, adivinhei-lhes o tom mais-que-perfeito
na memória do cheiro a terra fresca.
Se tivesse aqui a tua mão pousava nela a corola avermelhada
e aconchegava-a no seio injusto do presente.

Sunday, January 14, 2007

a síntese

Há assuntos que, só por si, são controversos, especialmente se envolvem emoção na sua análise e isso acontece inevitavelmente quando somos parte do problema.
A cada um o lugar de opinião; a cada um o direito de exprimir razões e emoções.
Muitos passaram por aqui e deixaram sins e nãos. É fundamental que se abram espaços à opinião livremente expressa.
Contudo uma das pessoas que por aqui passou, deixou esta síntese que me satisfez pela maneira conhecedora e objectiva como equacionou as várias faces do mesmo problema.
Eu não reduziria a questão apenas ao nosso país, pois sei que toda a Europa Ocidental vive o mesmo drama. Contudo, ao lermos este esquema de causas, conseguimos entrelaçar um conjunto de coisas nas quais cada um de nós já pensou mas nunca escreveu desta maneira.

Disse a addiragram que "a jovem democracia também trouxe:

1- a confusão de papéis;

2- a implementação de modelos preversos - como o do ensino integrado;

3-a confusão entre autoritarismo e autoridade;

4-uma política de negação dos problemas sociais e suas gravosas consequências;
5- uma desresponsabilização progressiva dos vários intrevenientes (é sempre o Outro o culpado);
6- uma falência da função paternal (entenda-se aqui o fundamental que é a introdução de regras e limites) e um ênfase dado ao lado maternal (compreender, tolerar, não frustrar...);
7- a mentira da "mascarada" dos números e dos objectivos...

Só saneando este lado mentiroso da mente que está presente nos políticos, nos pedagogos, nos pais, nos professores e nos alunos retomaremos alguma lucidez para enfrenter esta montanha de escolhos."




Saturday, January 13, 2007

Haverá saída?


Há cerca de uma década comecei a sentir alguma relutância em ceder à ideia de que todos os alunos eram iguais dentro da sala de aula e que o ensino a ministrar devia ser o dos objectivos padronizados para o aluno médio, pressupondo-se que a mediania seria atingida por todos.
Nunca me dediquei com afinco ao estudo das teorias pedagógicas porque a sala de aula é um lugar por onde não passam os ideólogos; ou se passaram, foi uns anos antes da publicação das suas obras reguladoras de comportamentos e, por muito que se queira comparar o nosso tempo de estudantes com o momento presente, não vale a pena tentar. Seja qual for o tempo (e é das coisas que mais me incomoda é ter de aguentar esta conversa quando alguém se põe a estabelecer essas comparações…) eu, que estou no terreno, localizo a mudança num crescendo que começou há menos de uma década. Sou capaz de dizer que tudo começou a “descambar” de há uns seis a sete anos para cá. Se não tiveram contacto com uma escola dentro desta data, não precisam de dar opinião pois acreditem que não sabem do que falam.
Dizia eu que enfrentei por essa altura alguns colegas mais “pedagogos”, perfeitamente alinhados no espírito do aprender brincando. Mas vem mais de trás, esta brincadeira; desde os anos 80 as tentativas para reformar o que se sabe estar mal têm sido muitas, mas nenhuma com tempo para ser bem sucedida, como se tudo se passasse ao nível da tentativa-erro, mas sem que se pegue no erro para o emendar. Desconcertados, os ministros vão aparecendo e vão mudando, riscando daqui e escrevendo ali, sem nada acrescentar senão a necessidade de reduzir o nível de exigência. Mascarar o insucesso para que sejam atingidos os níveis europeus de escolaridade. Este ano lectivo transitei alunos do 8º para o 9º ano com sete disciplinas em estado negativo; considerando-se que só no 9º ano é que atingem o final do ciclo, etc, etc, e que o terceiro ciclo é um todo, etc etc, e que os pais não estão muito de acordo com a reprovação, etc etc... deu-se o jeito. Curioso é que a inspectora que fez a auditoria à escola em Dezembro questionou o exagero de negativas nas disciplinas de História e Geografia. Em Matemática já não espanta, é o que se sabe!, em Inglês também não! (se algum dia alguem pensou que 28 alunos conseguem aprenderuma língua estrangeira em 90 minutos semanais pensou MAL!). Na língua Portuguesa, por muito mal que escrevam, o que se testa são outras competências... por isso já sabemos que temos de continuar a abrir mão do rigor na conclusão do 9ºano. Depois chegam ao Secundário com ambições universitárias, não tanto eles que detestam estudar, mas os pais. Eu também sempre quis o melhor para os meus. (A questão é o conceito de "melhor" ligada aos estudos universitários... mas esse é outro assunto).
Mas, retomando o fio, nessa altura já me custava muito ter de estabelecer objectivos mínimos para os alunos com défice cognitivo. Cheia de boa fé e pensando que podia ser eu a ter um filho com essas dificuldades, fui cedendo… Mas quando eu digo “um filho” assim, refiro-me a um adolescente comprovadamente diferente, integrado num mundo de iguais. Quem está livre disso?!
A pouco e pouco a minha atenção teve de recair sobre os menos dotados (e se eles crescem em número!!!), a quem devia ser prestada mais atenção para que atingissem todos o mesmo patamar. A consequência imediata disso é uma coisa que me tem enchido a cabeça nestes últimos dias em que tenho reflectido sobre o que aqui relatei antes – eu esqueci-me dos alunos “normais” (perdão aos ouvidos mais sensíveis). Da redução dos objectivos à centralização do ensino nas competências, tudo acompanhado de muitos impressos, dados para gráficos de sucesso /insucesso, formulários, planos de recuperação, planos de acompanhamento, et cetera, a coisa ia sempre bater ao mesmo: aqueles que aprendem mais depressa e anseiam por conteúdos novos, aqueles que são capazes de saltar rapidamente do saber ouvir para o saber fazer e depois para o saber ser, têm estado positivamente ao abandono.
Numa sala de aula eu fixo os nomes dos mais rebeldes no primeiro dia, falo quase exclusivamente para eles em todas as aulas, mando que sejam eles a ler os textos em voz alta, preocupo-me em neutralizar aí os focos de perturbação e muitas vezes não replico, não respondo, faço que não lhes oiço certo palavreado, quase como se fosse eu a parte mais frágil do casal contratuado para viver em comunhão, a bem da duração do casamento. À conta disso sou capaz de ter tolerado menos coisas aos meus filhos porque lembro-me que o chegar a casa, depois de um dia de aulas, era de tal forma desejar o céu, que era a eles que cobrava o silêncio e o sossego de que vinha carente.
Dizem as novas orientações que temos de trabalhar as competências e eu, cumpridora, tenho procurado que se promova a educação para a cidadania, palavra linda que faz a abertura de toda a literatura chegada às escolas.
Porém, já dei comigo a pensar que ando a dar pouca atenção ao aluno X ou ao Y, porque esse é competente e há-de desenvencilhar-se sozinho. E sozinhos têm ficado aqueles que têm objectivos traçados e que, à partida, vão lá chegar. Por esses nada tenho feito. E, reconheço, esses bocejam, absortos, frustrados…
Há dias dei-me conta que o João anda a perder o brio. Não lhe foi fácil perceber que teria de deixar de fazer os trabalhos de casa e “mandar uma boca” de vez em quando, na aula, para ser aceite no grupo dos que agora são os “normais”. Doutra forma é marginalizado. Mas o João chegou lá, agora. Mandei recado pela directora de turma para que os pais ficassem atentos, no sentido do rapaz não perder os seus bons hábitos (porque os pais deste são dos que nunca faltam às reuniões). Só ontem, depois de escrever o meu “grito” e depois de ler algumas considerações lá deixadas é que me ocorreu que não é aos pais do João que eu tenho de pedir atenção. Eles até são atentos! Sou eu que tenho de mudar de agulha! Eu!!!!
Vou tentar olhar para os alunos que merecem. Foi isto que decidi, porque não quero abandonar ainda esta guerra. Não quero encostar-me à porta da sala, sem palavras perante a má educação. Terei de a aguentar, se conseguir canalizar a atenção para quem a merece!
Terei de preencher uns papéis (são às dezenas), traçando planos de recuperação para os outros, mas eu sei quantos desses papéis tive de arquivar o ano passado (estão lá, nada se extravia) sem que os pais tivessem posto a sua assinatura no respectivo espaço. A escola que os eduque, a escola que os prepare para a vida, a escola que os ature. Ah, e que os ponha a fazer serviço cívico, que em casa eles não o fazem, dá muito trabalho insistir!
Na minha digressão pelo mundo dos blogues li há umas horas um texto que me deixou a pensar muito. Por isso vou já concluir, dizendo que não há solução para esta questão complicada. Não a questão do ensino, porque essa, eu vou tratar dela à minha maneira, nas minhas salas de aula. Não posso meter atestado por incapacidade psicológica ainda (lá virá o tempo!). A questão é a da VIDA e a do FUTURO. A vida de uma geração que daqui a uns anos não saberá o significado da palavra esforço, ou persistência ou brio. Os pais deles acham que todo o esforço traumatiza e aligeiram, para não dizer que abandonam. Os pais deles, se me permitem o desabafo, não querem sair traumatizados da situação. Os pais deles estão centrados em si e nas suas carreiras e no seu bem estar e no "está bem, faz lá o que quiseres e não me chateies!". Muitas vezes são as mães, porque os pais têm a parte mais fácil que é a do fim-de-semana quinzenal e dão tudo para suprirem o que não podem dar...
Preocupa-me pois, o futuro de um mundo em que há jovens são capazes de me dizer que aquele aluno lá da escola que anda de cadeira de rodas não tinha nada que lá estar porque um dia ainda vai ser beneficiado por ser deficiente e vai tirar o trabalho a outro que o poderá fazer melhor do que ele.

E, já agora, eu, que sou naturalmente pelo sim à interrupção voluntária da gravidez, também seria pelo sim à laqueação de trompas de certas mães e à vasectomia de certos pais.

Tuesday, January 09, 2007

Amanhã tenho de voltar lá!

Edvard Munch, O Grito

Pego no livro de ponto, na mala, no casaco e subo a escada. Passo pelos intervalos, desviando-me. Faço que não ouço nem vejo, ou às vezes já nem ouço e já não vejo... mas a linguagem é "de caserna", já não é novidade.
Eles entram. Tourada. Se eu não impuser autoridade ninguém se cala, mesmo depois de sentados – recados, mensagens no telemóvel, 'phones' nos ouvidos, mochila nas costas, cadeira que cai, ó stora olhe o Diogo!, stora posso ir ao cacifo buscar o livro?, stora não tive tempo de beber água, posso?, é pah, levaste nos cornos ontem, o Porto não sei quê, olhe lá o Paulo stora, PARVO!, PARVA ÉS TU!, aqui não se diz parvo, a stora ‘tá à espera, CALEM-SE, estúpidos. Daniel, quando eu precisar de assessor peço e pago, ok? Ordem e vamos começar, cadernos, canetas, livros e vontade de trabalhar, Ruben, tira os phones dos ouvidos, que mal é que tem, estão desligados, quero silêncio pelo menos durante os próximos cinco minutos…quantos livros há na sala – só? Paciência, um livro em cada mesa, mesmo assim há 5 mesas sem livro; mas viste o frango que o gajo deixou entrar, viste?, Cala-te … (entre dentes), stora não admito que digam coisas da minha mãe aqui (levanta-se)… eu não lhe disse nada ele é que é estúpido!... Consigo que escrevam o sumário que acabei por escrever eu própria no quadro (ou teria de repetir pelo menos 10 vezes) e a aula arranca. Começo a falar nos regimes autoritários dos anos 30, Ivan, presta atenção, se não queres ouvir não distraias o teu colega!, falo com a voz toda, uso o quadro, as mãos, os olhos, as fotocópias, os cartazes que trago ampliados, Marina, é na página 78, não mandei já abrir o livro?, peço que interpretem um imagem, Ana cala-te , mas eu não 'tava a falar, estavas sim, e presta atenção!, mas era só eu, não! os outros falam e eu é que pago porque sou preta?É sempre comigo é que se mete!ah, é preta...e eu sou amarelo, e eu sou encarnado, e eu sou águia, e eu leão, cala-te lá com isso, fogo!, ignoro-os e continuo a falar da militarização dos regimes, peço-lhes apenas que interpretem as imagens, há material bastante e interessante para se chegar onde quero, Ana, é para te calares, não me ouviste? (continua a reesmungar), Já viram como a imagem mostra os militares em perfeita ordem, ANA!!!!!, outra vez eu! Fónix!... mas stora há um que está fora da fila! Ai... eheheh está fora da pila´?, é pah, é mesmo estúpido, isto é só para me provocar, stora, e ri-se, ela, piscando-lhe o olho. Insisto na autoridade que caracterizava os regimes dos anos 30, na repressão; vou direita ao holocausto, ou pelo menos era essa a intenção, queria falar de tolerância e respeito, de valores... gostava que percebessem como era a vida dos pais deles ou dos tios mais velhos, ou dos avós, a minha avó já é velha, a minha tem 80 anos, a minha tem 100, eheheh, 100 anos, parece que é tótó; não me diga que isto era assim, os cotas mandavam naquilo tudo? POIS MANDAVAM, não mandavam nada, quem manda aqui sou eu, Heil Hitler, Salazar também era amigo dele? CALA-TE PARVO, Cala-te tu, oh!, eu tenho dúvidas tenho de perguntar. Dou meia volta, conto até 10 em silêncio, explico qualquer coisa, quero continuar a falar, elevo o tom de voz acima das deles, stora posso ir lá fora? quanto tempo falta p'ra tocar?! Se ela vai eu também quero... stora é verdade que amanhã falta? Não falta nada!, falta sim, eu ouvi dizer... Engulo o desespero, faço das tripas coração, não suporto os risos das três que se juntam lá atrás, pouco me importa se é de mim que riem, mas duvido, devem estar a contar as novidades, ontem uma dizia para a outra que nem os ossinhos escaparam, comi-o todo; faço que não oiço, faço que não vejo, procuro entusiasmar-me e dar a aula para alguns que estão interessados. não, não podes ir lá fora, então quer que faça aqui? Ignoro. Continuo. Vejo interesse na atenção e custa-me a maneira como alguns, em silêncio, aturam o mesmo que eu, mas estamos em minoria. Joana muda de lugar, traz para aqui as tuas coisas, EU!!, Porquê?, Porque EU QUERO! Olha, g’and’abuso!!, Joana sai, se faz favor. Ainda por cima, uma pessoa não 'ta a fazer nada, os outros é que falam e eu é que saio... mas vai ver, vou fazer queixa ao Conselho! Preencho um impresso, tenho de chamar a empregada e mandá-la acompanhar a aluna à sala da "gestão de conflitos", mas preciso de escrever a razão da expulsão e mandar tarefa a cumprir. (circula por lá um inquérito de um grupo de trabalho para saber que tipo de actividades os professores desenvolvem nestas salas de gestão de conflitos, onde se pensa pôr a funcionar uma bateria de actividades de carácter lúdico-pedagógico). Enquanto faço isso já a turma se esqueceu, já se dispersou. Retomo o fio à meada, estou a falar da maneira como os regimes faziam a sua propaganda. Voltaram a engrenar, minimamente. Entra uma empregada com uma ordem de serviço para ser lida que menciona uns alunos a quem foram aplicadas penas. Corajosamente e depois de muitas suspensões e outros tantos paninhos quentes, aquele Bruno do sétimo ano acabou por ser transferido para outra escola: primeiro instruiu-se o processo, ouviram-se os pais, os professores, a aluno, etc, etc, perguntou-se à DREL se era possível, se a ministra não nos mandava prender a todos com aquela decisão, agora é preciso saber se alguma escola o aceita, não se vai deixar o "menino" em casa porque está dentro da escolaridade obrigatória e os pais não iriam aguentar! Talvez agora já se consiga dar aula naquela turma.
A leitura da ordem de serviço desestabiliza… era o que faltava, g’andabuso! Havia de ser comigo, partia a escola toda, foda-se! Ricardo sai, agora tua vez, eu também sei dizer asneiras, Ricardo, mas aqui na sala não as digo, ok? Repito os procedimentos…
Não tenho cara para continuar a sorrir, gostava de ser simpática ou carinhosa ou sei lá o quê, para com alguns deles, os que me olham, à espera. Mas não tenho palavras para continuar.
Uma vez uma médica, a quem me queixei da frustração que às vezes me causa vontade de chorar quando chego ao portão da escola e me apetece voltar para casa, falava-me das histórias da indisciplina nos hospitais e dos doentes abusadores e dizia: “nunca mais quis aquele senhor no meu gabinete!”.
Eu tenho de estar ali todos os dias, eles têm de entrar, têm de ter aulas, têm de ser bem tratados… têm de ter planos de recuperação se têm mais de duas negativas, ok, eu escrevo isso tudo nas dezenas de impressos que aparecem por mês.
Apetece-me fazer como fazem os pais deles “não me chateies, faz lá o que quiseres e deixa-me em paz”.
Continuo a aula. Ainda procuro falar da Mocidade Portuguesa e de como era impossível a uma geração que aprende na escola a divinizar o chefe, ter outra atitude que não fosse a do respeito. Gostava de os levar ao estabelecimento do contraponto: o antes e o agora, o extremo da autoridade e o extremo da falta dela. Noutros anos era possível, eles gostavam de ouvir as histórias, traziam testemunhos das famílias…
De repente: stora, a Irina peidou-se! E zás, o Jorge levanta-se e muda para o outro canto da sala. A Irina tem 16 anos, o Jorge também. ahahahah, a Irina peidou-se… eheheheheeheh…. e a Irina joga a cabeça para trás a rir-se muito alto. Cheira muito mal quando me dirijo para a porta. Fico ali encostada, sem palavras. A Carla goza: ai peidou-se, eheheheh, peidou-se ... riem todos… saio, volto a entrar, digo que não tenho palavras e que os quero ver desaparecer todos da minha frente. Pego nas coisas, fecho a porta e desço a escada. Bebo um copo de água, não converso, não conto, não digo nada; apenas escrevo uma folha para o Director de Turma, mais uma… dou uns passos por ali, já não suporto a conversa das mulheres, somos quase todas mulheres que falam muito alto. E depois passam os dez minutos do intervalo e pego no livro de ponto para voltar a subir a escada e entrar noutra turma. Cumpro o dia. Estou debaixo de telha, tenho emprego, recebo o 13º mês, ganho mais do que o ordenado mínimo...
Amanhã tenho de voltar lá.


Não vim aqui choramingar para receber mimo. Não quero que venham dizer que tenho razão ou que não tenho. Não digam nada, leiam apenas e não escrevam nada!
Fiquem a saber que isto não é uma lamúria, um desabafo, um grito de socorro, não, isto é apenas um chegar à noite e pensar assim: amanhã tenho de voltar lá. Aquela (esta) é a minha realidade.
Bem sei que poderia ter de estar a trabalhar ao relento de fato-macaco ou a lavar escadas ou a perseguir ladrões, arriscada a levar um tiro ou a assistir aos que entram na urgência deitados, sem lhes poder valer. Bem sei que trabalho é trabalho e que o ganha-pão na maior parte das vezes não é aquilo que se quer, que se gosta ou com que se sonha.
Garanto-vos que no meu caso funcionou o gosto e a devoção, depois da vocação, há 24 anos.
Faltam ainda quantos?

Sunday, January 07, 2007

Buscas


Limei-me em fios de navalha, gumes de arrasto e raiva, quando os tempos passavam rente aos olhos sem rumo, rodas abertas de assombro.
Arranquei as crostas sempre antes do tempo ou as feridas instalaram-se em má carnadura, marcas ferradas em telas frágeis.
Bebi em malgas de aresta, contacto rugoso com lábios que secavam na contenção do pranto, superfícies ásperas a macerar flores mordidas.
Talhei bolos de terra e água contra a parede irregular do fundo do quintal e entalei os dedos no portão de ferro, vergão a doer sem lágrimas.
Pulei as cercas da imaginação, parada no mesmo lugar, sem que ninguém soubesse, fantasmas no escuro sobre o peito e eu deitada.
Puxei para cima da cabeça o cobertor dos Invernos de pés frios na humidade das paredes escassas, cheiro soluçado a casa triste.
Tapei os ouvidos com um crivo esburacado e contive o grito, tristeza amontoada em cruz nos olhos, riso frouxo na névoa.
Assanhei a voz para dentro, estilhaços de rouquidão sobrepostos, a pesar nos escombros da vontade.
Vesti asas e fingi voos enquanto a outra se colava ao chão, peso a mais sobre as pernas magras, escarpas entrecortadas por abismos a amedrontar as descobertas.
Roubei o sossego aos deuses e converti-me em tempestade, neblina, maré em fundo cinza, espuma desfeita.

Saturday, January 06, 2007

Vinte anos...

"Era forçoso que olhássemos na mesma direcção mas sem dúvida que nenhum de nós via o mesmo vento a bater, os toldos a voar, a areia escorregando e fugindo ."

Lídia Jorge, A Costa dos Murmúrios

Olhar na mesma direcção, sob um céu homogéneo, sem ver mais variações que não sejam as que a outra voz dita.
Falas, e toda a vida esvoaça, como se o mundo cantasse
e os cantos entoassem; em redor é tudo teu;

mas se a tua voz se cala, o canto do mundo cessa,
e fica a vida suspensa. E o silêncio é todo meu…
Murmurar que o tempo é eterno e nada mais interessa para além do círculo fechado sobre a resolução possível de todos os males. E ver cair a chuva na calçada ouvindo-lhe a melodia, ou sentir o gosto da língua do sol sobre a pele num dia de Inverno.
O renascer do tempo no rumor das veias.
Olhar na mesma direcção a colher sentidos; tatuá-los depois nos olhos e reduzir a visão ao imediatamente perfeito. Sem ter ainda percebido que o verdadeiro sentido das coisas é elas não terem sentido nenhum.
Sentir sobre a folhagem húmida o sopro de uma brisa salvadora e afiançar que o sol está ao alcance das mãos, como se todas as coisas do mundo passassem pela solução mágica da entrega, amor, promessa, verdade universal, esperança, certeza.
Tu estás aí, no lugar onde as palavras terminam
e se renova a magia do silêncio;
de costas para o tempo desafias a linguagem dos poemas
e acordas a poeira das noites;
tu estás aí, aqui,
na inquietação do corpo e no sabor das horas que hão-de vir…
Olhar na mesma direcção sem ter pressentido outra linha no horizonte, outra cor, outro som, outro mistério; sem ter percebido que o tempo cava distâncias, muda a rota nas agulhas, deixa traças nos tecidos e cheiro a mofo nas entranhas do desejo.
No lugar onde estás eu também estou,
num sonho ou num incêndio;
ávida, desperta e com as mãos em fogo, aqui me tens…
Não saber da escassez do paraíso, das altercações, das metas curtas, da luz frouxa dos amuos em dias longos.. Arrefecer depois a contra gosto e baixar os olhos.
Olhar persistentemente na mesma direcção – obrigação – e partilhar o sonho dos risos eternos das crianças ou querer também mantê-las tragicamente debaixo das asas a aninhar doçuras egoístas.

E o ser massacra, devasta, inquieta em permanência; debaixo da capa do bem estar desenham-se labirintos; o silêncio gasta-se e a inquietude das asas tece uma lentidão de segredos; desejam-se mistérios...
... mas já nada renasce
a não ser uma primavera hesitante... à procura de espaço.


Legenda - a verde: o que escrevi aos vinte anos;
- a preto: o que acabei de escrever.

Conclusão 1. O amor existe;
Conclusão 2. Não se pode rasgar o que está escrito;
Conclusão 3. Mesmo que se olhe na mesma direcção o que se vê nunca é o mesmo, a não ser ... aos 20 anos...
ou- reflectindo melhor sobre o que escrevi ontem e já era madrugada - nem aos vinte anos.


Thursday, January 04, 2007

"Entre o bem e o mal, uma mortalha de papel de seda"

Escher


“Impelido por outra situação talvez Einstein tivesse fuzilado gente em vez de descobrir tempos físicos e astrofísicos. Os carrascos de Auschwitz poderiam ter estado perto de uma importante descoberta no domínio da Bioquímica, e a prova é que se haviam interessado tão vivamente pela decomposição dos corpos. Assim a ciência e o crime poderiam ter entre si apenas uns passos de dança ou umas flexões de ginástica. Entre o bem e o mal uma mortalha de papel de seda.”

Lídia Jorge, A Costa dos Murmúrios


São apenas referências, estas, a excertos de um livro de que gosto muito pelo seu conteúdo reflexivo ou a pedir reflexão. Já tenho dito, em alguns comentários que deixo por aí, que sou leitora exigente e não é uma qualquer Rebelo Pinto que me faz perder horas de vida. Melhor, muito melhor do que isso temos aqui, e aqui e aqui e aqui, que me perdoem muitos outros mas hoje não os vou citar todos. Tudo a seu tempo.
Vem isto a propósito da notícia que há pouco ouvi acerca de mais duas execuções esperadas no Iraque para os próximos dias.
“Entre o bem e o mal uma mortalha de papel de seda”, diz ela numa obra que para mim é ímpar na sua teia narrativa, que parte de um relato escrito a posteriori por um não interveniente nos eventos relatados, e vai desmontando o relato louvando-o, mas provando, página a página, que aquilo que se diz depois "não vale a casca de um pêssego", e tudo o que fica do que passou é "uma memória fluida".
Ora para que ando eu às voltas com estas frases?

É que nas minhas andanças pela História acabo a concluir, vezes sem conta, que o passado é tão irrepresentável como a verdade; e por isso, o que se disser daqui a uns tempos não equivale nunca ao que se passou, quando o próprio jornalismo acaba por ser um rol de interpretações, a gosto (e a interesse) e de quem escreve e de quem manda escrever, referindo-se a coisas do presente…
Estaline apagou os sucessivos inimigos das fotografias (e nem photoshop tinha…); Auschwitz é dado como uma falsidade judaica pelas novas frentes nacionalistas austríacas e alemãs; Hitler mandou enterrar cacos para que os seus arqueólogos descobrissem nas escavações a lendária origem ariana do povo eleito, marcada por uma suástica que vai buscar as origens aos cultos celtas, aztecas ou hindus, entre outros.
Que outros exemplos? São inúmeros.
Lembro-me da estátua de Saddam Hussein a cair quando da chegada americana e lembro com igual espanto o que li há menos de uma semana sobre as declarações de Bush acerca da execução ocorrida: um passo para o processo de instalação da democracia no mundo, ou qualquer coisa assim… (o que se disser depois disto "não vale a casca de um pêssego")...

Questiono-me, como ela, acerca do bem e do mal.

E termino esta reflexão com um exemplo mais actual – Cavaco Silva diz que vai estar atento à actuação do governo. Referiu uma das áreas críticas (que me toca, naturalmente), dizendo que é hora de se começarem a ver resultados. Ele, que teve 5 ministros da Educação nos seus governos, qual deles o que deixou um rasto de maior mediocridade no acerto das reformas sucessivas que vieram a desembocar no ensino que hoje temos, ainda à nora com a melhor teoria para melhorar os resultados... ("entre o passado e o presente, uma memória fluída"). Há que fazer transitar os alunos para que se vejam resultados. Não importa que não saibam ler nem escrever. O que importa, isso sim, é que não saibam pensar. Cidadãos autómatos, colados às tecnologias, que não saibam ouvir um telejornal sem que o comentador respectivo venha ajudar a interpretar a notícia (qual notícia? O fait-divers, claro!)… Talvez venham a fuzilar gente, os meus alunos mais inteligentes, se o caminho que continua a ser apontado excluir o conhecimento da História, da Filosofia e de outras coisas importantes para se perceber outras razões para se estar aqui que não sejam apenas as teclas de um computador que, efectivamente, nos ligam ao Mundo.
"Entre o bem e o mal, uma mortalha de papel de seda".
Teria pano para mangas se continuasse a escrever...

Deixo isso para quem quiser. Siga a dança!