Monday, November 27, 2006

Vento cansado ou corolas secas metidas em páginas de livros


Ao fim de tantos anos o vento ainda uiva na varanda
Enquanto eu bordo as palavras num linho desbotado.

Não é que me apeteça ser esta ilusão de repouso na noite
Posso sempre fechar a porta ou esconder o corpo
Entre o linho e as palavras
A publicidade tem de ser guardada para quem precisa
De viver a juros
Não é verdade que alguma coisa em mim repouse
Diz-me a brusquidão dos gestos e a pressa;
Essa que borda palavras não sou eu.
Mas gostava de usar as tintas e pintar flores coloridas
Em caixinhas para oferecer no dia de natal
Eu sou a que ouve os uivos do vento
Gravados neste desejo cansado da procura
A que espreita para lá do fim das avenidas
E dispara palavras para dentro, ao fim da tarde.

Gasto-me em cada cigarro queimado, ou no colo de uma página
Albergue inanimado de corolas secas.

Sunday, November 26, 2006

Dezembro = Incómodo

Agito a pressa ao volante e corro, corro…
Comecei cedo e já enquadrei objectivos em matrizes, antes de enquadrar imagens e equacionar a exigência, diminuindo-a cada vez mais, não vá a frustração dos resultados ser tão grande como a desta manhã de sábado; acordei tarde e o frigorífico está vazio. Começa a pesar-me a consciência por ter dormido mais uma hora.
Agito o dia, agito a pressa; ponho as compras no porta-bagagens e quando o vulto se aproxima digo apressada: "Hoje não, hoje já não dou mais nada a ninguém". Ele diz então que dará ele e deixa-me nas mãos um cartão com desejos de um Bom Natal. E sorri depois, quando eu torço as mãos para desfazer a curva e sigo em corrida. Tenho pressa. Penso no assunto ou sigo? Era para recuperar toxicodependentes ou para lhe alimentar o dia?
Dentro do supermercado já as renas me tinham enfastiado e as cercaduras de bolas brilhantes eram excessivas. Música de Natal e gente de olhos enrolados nas prateleiras à procura das prendinhas; desculpe, desculpe, quero chegar à fruta e ao leite mas a estratégia é colocar na entrada tudo o que não faz falta e mais os miúdos do banco alimentar que não deixam escapar uma só pessoa sem lhe porem nas mãos um saco. Por que é que tenho de ser eu?
Ontem recebi uma carta para mandar dinheiro por conta de uma vacina: duas quadrículas duas vacinas; ou dez vacinas para deixar viver mais crianças no mundo, diziam. Pus a carta no lixo; não deviam ser os Estados a financiar o direito à Vida? Sei que querem deixar morrer os velhos, peso inútil, fonte de gastos. Mas as crianças senhor...
Também a mim me fazia falta uma vacina contra a pressa; ou contra as memórias de Dezembro a chegarem violentas; porém são outras as coisas que compro na farmácia e dou um saco cheio de comida ao miúdo que me bate à porta, que não é miúdo mas não cresceu e não tem mãe; e desconto metade do que ganho para o Estado-Senhor alimentar quem nada tem (é Dezembro... deveríamos acreditar?!) e pago as ampliações das gravuras para colar no quadro com bostik e as cartolinas e as fotocópias extra e os óculos que ampliam as letras cada vez mais pequeninas pela noite dentro; e as propinas dos filhos e o pão de cada dia e os juros do empréstimo; e não cedo, juro que não cedo à pressão diária dos telefonemas para me darem um cartão de crédito sem encargos de anuidade.
Sou privilegiada por não cumprir a saída diária depois das seis da tarde? Ao serão compenso e não me deito sem ter na pasta os materiais que saem destas teclas e de uma imaginação quase gasta, quase apagada, para que a manhã seguinte não me apanhe desprevenida.
Compenso? Talvez devesse deitar-me mais tarde, não consegui fazer tudo o que queria!
Ao sábado, porém, deveria ir ao cinema. Ou ver o mar. Não tenho camisas para engomar nem quem as vista e ainda bem porque posso prolongar o serão sem me chamarem para a obrigação nocturna com hora marcada. Alívio!
Agito a pressa, agito, agito, agito. Se vou ao cinema tenho de passar pela multidão que se passeia pelas montras à procura das prendinhas; e ver o brilho das bolas presas ao verde fingido das árvores de Natal. Se vou ver o mar falta-me tempo para os papéis amontoados na secretária. E, pior do que isso, vejo no mar os Dezembros que passaram... e a memória do som dos risos e do cheiro dos fritos e das luzes a piscar nas árvores de Natal do passado nunca me animam.
Dezembro traz sempre o mesmo incómodo, anos a fio, anos a fio…

Friday, November 24, 2006

Neblina na hora tardia do serão, enquanto chove.

Salvador Dali - City of Drawers

Declina o dia e com ele os retalhos emendados na neblina destes pensamentos velhos; não gosto do anoitecer precoce quando a hora se faz tardia nem deste gosto embaciado do serão inútil. O gato roça-se e aninha; e eu sem serenar remexo nas entranhas da saudade e vou organizando os papéis eternamente dobrados sob a tentativa da harmonia.
Dezembro aproxima-se no vento que hoje assaltou o meu quintal enquanto eu recuso o cansaço e digo que está tudo bem. Detesto as trivialidades mas também não me apetece que me tomem pelo destaque das palavras semeadas nos alfobres das minhas inquietações. E no entanto alimentei a terra antes das sementes e cuidei delas com o desvelo de quem só harmoniza a geometria das construções no momento em que o dia já percorre a outra latitude.
Não me apetece repousar o corpo sabendo que dentro dele a paz foi tomada de assalto pela desagregação das frases estruturadas a preceito; repousarei as mãos, apenas, depois destas palavras. A mente é mais tenaz, não cede, não se deita, não se deixa levar nem leva em si mais do que os retalhos emendados teimando em dizer inteira a fórmula da saudade que é a forma repetida do sonho sem uma única incógnita por resolver.
Deito o corpo, prometo; deito-o ali ao lado, na largura da cama, estendo-me serena; e depois enrolo-me em mim apertando o pesadelo: sei que hei-de começar a queda lá em cima, no topo das escarpas e que vou acordar ainda a meio, pela manhã, quando tudo recomeça.


Tuesday, November 21, 2006

Pôr fim à dor ou trazer mais dor? (eu não sei a resposta!)

Sim, podia até colaborar na morte como bênção, como finalização digna de uma vida vegetativa onde a qualidade, para além de não existir, nem pode ser avaliada pelo ser que está vivo porque de um vegetal se trata. Seria o desligar da máquina. Ponto final.

Sim, podia colaborar na morte como bênção, como finalização de uma vida sofrida, sem perspectivas como era a de Ramon Sampedro, vinte e cinco anos de um ponto final no mais leve movimento físico: “ un tetrapléjico es un muerto crónico que tiene su residencia en el infierno”, disse ele, ou deixou escrito, desesperado pelo reconhecimento de um suicídio assistido porque nem as mãos o socorriam para levar à boca o veneno mortal, à falta de pernas que o levassem a um lugar qualquer. Seria o satisfazer de uma vontade de pôr fim ao nada. Ponto quase final … ficando por saber da minha coragem para o acto “abençoado”.

Sim? Sobre uma criança? Uma criança com deficiência profunda, com os dias de vida contados, em fase terminal e sem esperança de retorno? O meu filho ou a minha filha?

Para mim que vivi o drama de uma deficiente próxima que quase me ficou em herança porque a longevidade instalou-se ali como que colada ao corpo deformado de um ser semi-gente… semi-nada…
Para mim… a questão é dura.
Teoricamente parece fácil, mas quando tem de ser a nossa mão a decidir…

Na Holanda (é sempre na Holanda) fala-se nisso. A polémica está instalada:

Reviveram os médicos alemães dos anos 30?
Mas…
Vale a pena ser privado de vida própria para toda a vida porque se teve um filho que não tem vida?

O que é que vale a pena nesta vida tão curta e tão pesada onde a matriz judaico-cristã nos deixou acreditar que o sofrimento liberta, ou é saudável, ou dignificante, ou encaminhador da vida eterna…

Sunday, November 19, 2006

Abraços



Do mar à montanha vai a distância medida em diagonais concêntricas. E o acaso.
A possibilidade não acontece apenas nas palavras inventadas. Tu sabes. Também o enlaçar que fica dos primeiros tempos aprisiona. Ou prende. Ou liga.
É uma linha traçada na geografia, do extremo oeste ao extremo este, mas vista do sul para o norte. Uma história em que eu também entro, ainda que à distância, envolvida nas diagonais das coincidências. Mas isto sou eu que digo, fechada na pequenez do meu espaço. Lembro, contudo, dias de verão em que nos juntávamos a ver o mar. Lembro a pedra da galé e as ondas batidas na extensão da areia até às rochas. Abelhas, búzios, peixe fresco e festa. E drama.
Depois passaram os dias e com eles os anos, sem que a gente se apercebesse dos limites do tempo. Os outros envelheceram, dizemos nós que vamos limpando todas as manhãs as folhas secas que o vento deixa espalhadas pelo pátio. É Outono apenas; mais nada de importante se passa para além dos ciclos que no espaço descrevem as diagonais. Digo eu, de novo fechada nesta pequenez.
O teu espaço é agora mais vasto e a erosão dos elementos não perdoa a calma com que disfarças os gestos cansados. Temos rugas, todos; vêm ao de cima fragilidades que provavelmente partem dos ossos gastos nas caminhadas mas chegam também à pele pregueada a mirrar de teimosia. Perto de ti há quem precise de um agasalho quando a geada cai e tu sabes trazê-lo no momento certo. Não é que esteja frio; se estivesse seria mais duro lembrar que Dezembro não tarda. Assim, só o entardecer precoce do dia lembra o passado.
Não muda em mim esta tendência antiga de colocar as manchas negras sobre as cores; mas tu disseste que já não recordavas o que se passou ontem. Que fique para trás o passado e os monstros que o povoam, foi assim que eu ouvi. Soube bem abraçar-te.

De tudo o que fica é bom saber que o laço aperta ainda e que os sentidos se agitam quando a gente aperta no colo os bracitos tenros ou quando se festeja a amizade num soprar de velas.

Thursday, November 09, 2006

Arco-íris em paleta de cores

Ao meu filho

Não posso falar aqui de amores sem trazer à conversa o arco-íris na paleta de uns olhos que nasceram atentos aos movimentos imperceptíveis dos planetas. Uns olhos que copiam da linha calma do mar o equilíbrio, e o transportam para a mão certeira que faz sair depois, da ponta de um lápis, a sensibilidade em exigência dura.
Olhos que nascem no coração e se mostram em sorrisos tranquilos. Meus, só no momento do primeiro toque e logo depois em conquista de um lugar no espaço. Luta dolorosa em certos dias já passados e ultrapassados. Esperança minha, barro tirado de mim para ter forma própria.
Ligação apertada, a da palavra com a imagem. Entre mim e ele um laço escrito, estreito, desenhado a pastel sobre seda fresca. Ligação de cumplicidades assente em leito firme.

Ligações de amor incondicional, estas que me prendem a uma Lua e a um Sol em volta dos quais giram os meus olhos. A tentar pôr distância na proximidade, não vá o fio apertar em excesso o jeito de voar que as minhas asas lhes ensinaram.

Wednesday, November 08, 2006

Selene

à minha filha

Era o travo do meu pão a saber-te a pouco e tu a amassares com raiva uma massa tenra já crestada. Ou nem por isso mas simplesmente porque esmurram a farinha e saltam e se soltam, as crias, quando chega o dia.
Era um gosto gasto, insisto. E a ira colada às tuas asas com sonhos de Ícaro.
Era o casario da beira-mar a chamar-te para o centro e tu em desejo de sair do labirinto na vertical, por sobre as águas do rio e sem pontes.
Era o atrito das coisas próximas a faiscar e eu a subir em vão os degraus para te travar na torrente bruta das palavras. Sem te alcançar. Sem nos vermos frente a frente por ser nas costas que eu carregava o fardo cujo peso dobrei em culpas.
Era a tesoura a cortar o fio das mãos esticadas que se tocavam ainda ao de leve mas a medo.
Era a solidez no desafio dos olhos, heranças minhas; pão de mistura com travo a passado firme, pronto a enfrentar o dia novo, na vertical, mas repousando aos poucos na ponte que tecemos de uma margem até à outra.

Sunday, November 05, 2006

... entre a porta e a lua cheia

Tenho sempre a sensação de ter ficado à porta. Entre a porta e o tempo que vai escurecendo as paredes. O lado de dentro. Entre a porta e a lua cheia que as marés transportam. Chamam-me do lado de fora as marés de arrasto e eu firmo os pés.
Tenho sempre a sensação de ter uma porta entre mim e o que não fiz; entre mim e o que não faço. E um relógio nas mãos.
Procuro com os olhos um lugar especial, um lugar como o lugar antigo onde o tempo não deixa regressar. Queria sentar-me, inteira, do lado de dentro, na calma de um lugar paciente. Tenho saudades de estar completa nos risos e nas brincadeiras a quatro, quando éramos quatro. Saudades que o tempo agrava em vez de aligeirar.
Vejo-me; observo-me; ali entre a porta e o lado de dentro onde nunca estou inteira. E no lado de fora está sempre uma temperatura que me incomoda.
A lua ao alcance das mãos e eu entre o abrir e o fechar da porta.
Frases elípticas; frases de não sair daqui, de não chegar a lugar nenhum.
À porta, sem saber para onde dirigir os ponteiros do relógio.