Tuesday, July 25, 2006

Por onde andam os sonhos?

Li o texto. O assunto interessava-me e precisava de ocupar as duas horas em que o único aluno presente (faltaram quatro) fazia o seu exame de Francês.
André Comte-Sponville escrevia sobre o Maio de 68: «Mai 68, un souvenir de bonheur».
Depois resolvi o teste de exame e fui percorrendo as minhas memórias, não as do Maio, porque o não vivi (estaria na escola primária e era cedo para ouvir os ecos, se eles tivessem chegado) mas a de uma revolução, a de Abril, em que eu própria, muito jovem ainda, me vi de bandeira no ar, dentro da multidão, num ambiente caloroso e promissor. Sonhava. Eu e os da minha idade.
«Mais il y avait de la misère. Mais il y avait des bourgeois arrogants et des ouvriers harassés», diz Sponville na sua recordação, interrogando-se «comment un rêve prendait-il le pouvoir ?»
Enquanto o aluno resolvia as questões de escolha múltipla e contava as palavras que resumiam o outro texto, sobre o baby-boom dos anos 40, questionei-me também: onde estão agora os sonhos?
Olhei para ele. Foi meu aluno há oito anos, talvez menos, e estava ainda com o Francês por fazer para conseguir terminar o Secundário. Nessa altura já eu começava a queixar-me da indisciplina provocatória, ele próprio era rebelde, mas agora… “eles hoje são piores, não são stora?”
Certamente têm sonhos – terminar o Secundário, arranjar emprego, Universidade para alguns, uns por convicção, outros porque os colegas também vão, outros para adiarem o momento do desemprego, ainda que sem essa consciência expressa.
«Cours, Camarade, le vieux monde est derrière toi!», era o slogan pintado a letras grossas numa parede, lembra Sponville no texto do exame do Rui.
E agora ? Que pensará o Rui, ali às voltas com o dicionário, procurando a positiva que o ano passado não conseguiu ter? Sonha com o seu futuro? Com os desejos das pessoas da sua geração?
Sonhará que é possível mudar a sociedade? Melhorar o Mundo?
Porque converso com eles diariamente, tenho a noção de que não é isso que os preocupa.
Sim, alguns falam de Israel e do Líbano, mas não creio que a palavra Hezzbolah lhes diga alguma coisa. Raros são os que vêem ou ouvem notícias e não sei quem, de entre eles, compra um jornal. A Bola, talvez, ou um equivalente. À noite entregam-se aos Morangos com açúcar e sonham fazer um casting para aparecerem na TV e terem sucesso.

Sonhos? Cada vez mais os de CADA UM. Os dos outros são DELES e ELES estão todos muito longe. Salve-se quem puder!

Tão longe que estás Maio de 68!

Saturday, July 22, 2006

as arestas da dualidade



Cruzava-me com eles ou via-os do outro lado da rua em ritmo de passeio e refreava o passo porque me incomodava a minha pressa que não era pressa mas hábito de nem sequer conseguir reparar no rio também ele acostumado a entrar-me nos olhos perdendo o encanto das primeiras vezes se é que lembro as primeiras vezes porque a memória é feita de amontoados de imagens e cheiros e sons que se misturam numa confusão de tempos sobrepostos como meada sem fio e sem ordem e eu desordenada nos passos embora respeitasse os sinais de proibição em acostumado cumprimento da normalidade imposta e em respeito à norma evitando os desvios da rota ou do rumo que o tempo vai traçando ou eu por ele que a minha teimosia desvia normalmente os encantos trocando-os por outros igualmente fantásticos na origem mas íngremes no percurso que nem sempre escolho por me sentir partida em duas metades não complementares nem amigáveis que bifurcam o caminho como nas histórias em que é preciso fazer uma escolha ficando nós a adivinhar as duas leituras possíveis e invariavelmente optando pelo final feliz que seria o caminho que todos os outros pensavam levar ao cruzarem-se comigo no passeio ou no outro lado da rua embora a gente saiba que no final nos espera um porto sendo este um local de chegada mas também de partida pelo que nunca sabemos se devemos fazer como se chegássemos repousando e unindo as duas metades ou como se tivéssemos de partir inteiros. Parto?

Friday, July 21, 2006

Deixa-me ficar na sombra


Não tinhas necessidade de me prender ao corrimão das palavras que eu não sou capaz de dizer para aí me deixares refém das tuas interpretações; não, não trouxe os phones desta vez, ouço tudo o que dizes e adivinho-te também, não penses que és o dono dos olhos alheios ou do som das palavras que eles dizem a ressoar na ampliação dos teus modelos. Grades.
Nem tinhas necessidade de me encaminhar para os degraus de um incómodo que em certos dias é dilacerante, particularmente se antes ouvi uma música já de si melancólica, que nem é tanto a música, mas as palavras com que ela é dita. Ecos.
Estou cansada dos círculos com que me envolves e da corrente que prendeste à estante para que as minhas mãos lá fossem ter e eu a querer soltar-me de gradeamentos antigos e a prender-me noutros que ameaçam eternidade em folhas já lidas. Repetições.

Sei que quanto mais me olhas mais confirmas a ordem de prisão, sabendo da fragilidade da minha teimosia.

Viste como me encantei com a palavra teimosia mesmo vestida de fragilidade?

Sunday, July 16, 2006

Histórias 5.

Juntou os copos que tinham ficado no lava-loiça. Não podia perder o hábito da arrumação da casa, ao menos esse. Da última vez nem deu conta, mas as garrafas amontoaram-se durante muitos dias e quando tomou consciência assustou-se.
No início dava-lhe jeito a sensação de estar anestesiado mas agora enfastiava-se, culpava-se, flagelava-se e depois compensava-se. A boca sabia-lhe cada vez pior, o último copo deixava de ser o último porque a vontade pedia outro, só mais outro e o acordar era já tão penoso que mais valia permanecer. O corpo não reagia depois de ter estado enrolado no sofá da sala. Abria os olhos apetecendo-lhe voltar ao princípio mas tinha de ir trabalhar, era assim todos os dias. Os fins-de-semana, porém, estavam a deixar marcas; não havendo horários nem obrigações era mais difícil parar.
Encontrava cada vez mais dificuldades nas respostas às perguntas que fazia antes de abrir a primeira garrafa, a cabeça começava a ficar confusa no emaranhado de caminhos possíveis. E o medo agigantava-se porque o exercício já não era novo e a maneira de lhe escapar repetia-se, sem fim à vista.
Se tivesse vontade própria não tinha deixado as coisas chegarem tão longe; se ainda existisse amor talvez tivesse conseguido evitar a degradação. Mas gostava tanto dela, ainda a via como a menina por quem se apaixonou na escola. Gostava? Então se gostava por que não lhe conseguia ouvir a voz avisada? E ela porque teimava em recriminá-lo se a ajuda não podia ser essa? Ela estava ausente da sua vida, isso ele adivinhara havia muito tempo, mas qual o momento em que isso acontecera? Se o descortinasse era capaz de perceber e poderia tentar voltar atrás, emendar o erro, restaurar a vida.

Hoje não iria trabalhar. Tinha de continuar a tentar perceber.

Saturday, July 15, 2006

Esta noite venceu o aroma esverdeado


Hoje mudei o ângulo de observação, sentei-me do outro lado e encarei a fachada sob o efeito do aroma das flores que abrem à noite.

Isto promete, foi o que pensei, enquanto me desprendia das camadas de pó que me obscureciam o vestido.

Só então me apercebi que estava vestida de verde.

Sunday, July 09, 2006

Histórias 4.

Tamara de Lempicka

Do que ele tinha medo era do poço das palavras dela. Não queria escutá-la por muito tempo por isso replicava e contrapunha, percebendo que precisava do confronto para não lhe dar espaço. Sabia que ganhava nos argumentos, treinados desde o berço ou desde a definição dos genes. Habituou-se, pois, a ficar à tona, mas temia-lhe a dimensão do olhar mesmo em silêncio. Nunca se questionou se fugia, mas não devia ser de fuga o seu investimento pois sabia-se empreendedor e adaptável, obstinado nas metas.
Ela habituou-se a calar as respostas, fechada no desagrado até se diminuir no espaço. Enleava-se numa pequenez quase assumida, mas só por fora ou só para fora, segura que estava da sua solidez feita sobranceria. Mas disfarçada. Podia ser a sua forma de agressão, o seu ataque mudo. Ou a sua maneira de inventar o desafio do amor encaixando-o na figura ali presente. Ou uma forma de amor tornada posse, ou certeza de permanência na interacção da discórdia.
Na cama fingia dormir, enquanto ele soprava o desespero.
Dizia que o amava.
Atenta às variações confessadas do amor, tentei saber de que era feito esse sentimento que parecia um afecto envenenado. Percebi então que o medo é construtivo: temia o abandono e por isso abandonava, querendo possuir. Antes da ausência imposta já ela não estava lá, sendo a primeira a desobrigar-se.
Construção estranha mas funcional, pelo menos enquanto o hábito não se tornou insuportável ao mecanismo do convívio diário.
A verdade é que todos os hábitos enfermam desta mesma característica, mesmo quando as variações do amor são estáveis.

Wednesday, July 05, 2006

Palavras

Descem de um lugar que é como fonte para se fixarem na ponta dos dedos. Depois querem passar aos lugares visíveis.
Não se podem deter, não adianta querer discipliná-las porque ferem a mente quando se evitam. Querem-se livres.
Se as digo?
Muitas vezes, sim. Preferia dizê-las sempre mas nem sempre as sei, mesmo estando vivas.
Mais fácil é escrevê-las assim, juntas, em construções miúdas.
O que falta?
Ambição e tempo. O mais não passa de uma janela aberta.


Podes entrar.

Sunday, July 02, 2006

Pensamento dobrado


Espero-te ainda no lugar dos mitos

Para mim és água fresca em fim de tarde
Folha de hortelã, barro molhado
E eu incêndio.

Antes era o fulgor das palavras impensadas.
Agora é calma muda, reflectida.

Vejo-te por dentro das pálpebras
Como se uma coluna grega se dobrasse
Em graciosa vénia.
Quando te penso invento a perfeição.