Tuesday, May 30, 2006

Um dia destes passo-me!

Só precisava de registar uma carta e foi por isso que tive de tirar uma senha e aguardar a minha vez no posto de correios mais próximo. Uma única funcionária onde havia lugar para quatro (ou cinco?), lenta e pouco atenta – talvez por causa do calor – estava há mais de dez minutos com a mesma pessoa e um segundo funcionário vinha a chegar, mas antes de começar a atender foi pedir saquinhos de moedas à colega, colocou as moedas na caixa, gesto normal para quem vai atender o público, e encheu o balcão de livros infantis e saquinhos com pirilampos. Colocou tudo metodicamente. Só depois olhou para quem esperava e marcou um número. Ainda faltavam seis para chegar a minha vez.
Para me entreter fui vendo o que havia à volta: expositores de livros – Estampa, Pergaminho, Europa-América… muitos deles para jovens, tipo “as minhas borbulhas” ou “será que estou apaixonada por ele”; mas também muitos “códigos…”. Uma parede cheia de canetas, lápis, afias, borrachas, caderninhos de papel reciclado e outros brindes. Do lado de dentro do balcão, na parede, duas bandeiras de Portugal e uns volumes de qualquer coisa como “tudo sobre o mundial” e outras coisas que a minha mente não conseguiu reter, tal era a quantidade de informação, embora olhasse para tudo a pensar para comigo “isto dava um belo post”.
“Não tem netinhos?” perguntava a senhora ao idoso que foi atendido antes de mim. “Compre um livrinho, já viu estes de pintar, até trazem lápis de cor”.
O outro empregado vendeu um pirilampo à idosa. Perguntou-lhe também se tinha netinhos. Penso que estes (e outros) idosos recebiam a sua “reforma”. Contavam duas ou três notas para ver se o dinheiro estava certo.
Depois a senhora pesou-me a carta, pediu-me a quantia e apontou-me os livros:
“Qual destes é que vai levar?”
“Nenhum”
“Não me diga que não vai comprar nada”
“Não vou comprar nada”
“Nem este?”…
Não ouvi mais nada. Acho que fui mal-educada, mas foi apenas porque saí.
À tarde ligaram-me para o telemóvel para me ajudarem a escolher a melhor tarifa.
Há dias era para ir levantar um prémio por causa de um inquérito a que respondi num hipermercado (respondi??).
Ontem à noite tinha posto fim a um telefonema de um banco (sei lá qual!) ainda antes do rapaz continuar a conversa, porque não uso cartões de crédito.
Na caixa do correio há correspondência afim, dia-sim, dia-não.
Na escola (sim, no meu local de trabalho), estava um casal sentado a uma das nossas mesas a chamar cada um de nós para publicitar um outro cartão de crédito, o mais vantajoso de todos. Nem me cheguei, mas ainda assim fui aliciada.
“Não”.
“Mas não tem anuidade, pode desistir ao fim de seis meses e ao menos ajudava-me a mim”.

Um dia destes passo-me!

Wednesday, May 24, 2006

Sobe que sobe, sobe a calçada…

Depois fui trabalhar, mas já tinha ido às compras e deixado o almoço feito. Antes tinha estado a ajudar um dos filhos a rever um trabalho mais exigente cuja apresentação era hoje, no IST. (correu bem, já sei). Tinha estado também a ler até tarde, coisas de trabalho, também, mas outro, um que faço por conta própria e sem remuneração. E não é só por prazer, porque isso seria ter um livro para ler e não o fazer. É que não me apetece estar no mundo por ver os outros, e a preparação das aulas mais a correcção dos trabalhos e a organização de materiais é coisa de pouco desafio, ao fim de uns anos. Absorve tempo, sim, mas não satisfaz. Podia dizer que é para estar melhor preparada, que é pela exigência do meu público, pela boa preparação que lhes quero dar. E quero. Só que não tenho resposta. Mas, ainda assim, não se pode entrar numa aula de 90 minutos e esperar que 20 e tal adolescentes nos oiçam. Teoria? Nada disso. Levava, pois, a mala cheia de papelada, textos, cartolinas com imagens, bostik para as colar no quadro, fichas de trabalho…
Dormi pouco, portanto. E a escola já não é o lugar para onde costumava ir com gosto e vontade de novidade. Apetecia-me tudo menos confusão.
À chegada, ainda antes de entrar ao portão, dei de caras com muitos e muitas, todos ao monte junto aos carros estacionados. A maior parte dos carros são deles e é vê-los à saída todos inchados porque vão pegar no popó e fazer figura. Os professores (os que têm carro) têm de estacionar onde calha…
Estou a falar de uma escola secundária, onde agora também se misturam meninos do ensino básico, tudo junto e em guerra.
Ali estavam umas dezenas de cabeças com bonés, reparei nisso, pareciam equipas diferenciadas, uns de lá e outros de cá, assistidos por terceiros que esfregavam as mãos porque ia haver porrada…
Vi-me metida no meio, jé eles se empurravam. Fiquei com os ouvidos cheios das palavras que eles mais sabem dizer. Não me atrevo a repreender ninguém, não resulta, já fui insultada quando o fiz. Eles não chegam a perceber porque é que é incorrecto dizerem “foda-se” e “caralho” 799 vezes por dia, em todos os lugares públicos e privados; e não acredito que todos os progenitores sejam trabalhadores da construção civil.
Chamou-se a polícia. Não vieram.
Depois passei a tarde a fazer telefonemas porque os que eram meus alunos podiam ser meus filhos e se fosse eu a mãe ficaria grata a quem me dissesse que à porta da escola se fazem esperas, um gang de cada lado e os carros cheios de paus e ferros.
Só me faltava dar uma aula para acabar a tortura. Revolução Francesa, liberdade, igualdade e fraternidade. Direitos do Homem e do Cidadão… e eu entusiasmada com as analogias que ia trazendo à conversa. Meia dúzia a ouvir e os outros em pleno galinheiro. Um canta baixinho. Quando me calo, cala-se; quando recomeço, recomeça. Uma derrama o tubo de cola sobre a mesa e põe-se a guinchar. Separo dois. Amuam e dizem que já não trabalham mais. Um deles ainda diz “Pois agora é que vou mesmo portar-me mal”. Ponho alguém fora da sala? Quem???
Quero continuar a esquematizar, no quadro, aquilo que muda num país com uma revolução. Gostava de lhes explicar o que é uma constituição e o que é o poder legislativo e quem o desempenha nos países democráticos…
Uma voz diz “Nós também somos povo e devíamos era fechar na sala de professores os cotas todos que nos atrofiam com estas tretas”.
Cansei-me. Parei. Tentei brincar… às vezes resulta.
Saí.
Amanhã volto para o mesmo lugar.

Tuesday, May 23, 2006

País desfocado ou um todo que é uma parte que não interessa a ninguém

Glórias... as da permanência no Índico, à força de guerras sangrentas para saquear a pimenta e as outras mercadorias que vinham para enriquecer a corte.

E as do futebol... nos sonhos.

Bandeiras... os estandartes exibidos na frente das batalhas contra os mouros no Norte de África, em razão da razão divina.

E as mais belas... nos estádios.


Arte... a de furtar. Nossa, muito nossa.



"As artes, dizem seus autores que são emulações da natureza; e dizem pouco, porque a experiência mostra que também lhe acrescentam perfeições. Deu a natureza ao homem cabelo e barba, para autoridade e ornato; e se a arte não compuser tudo, em quatro dias se fará um monstro. Com arte repara a mulher as ruínas que lhe causou a idade, restituindo-se de cores, dentes e cabelo, com que a natureza no melhor lhe faltou. Com arte faz o escultor do tronco inútil uma imagem tão perfeita que parece viva. Com arte tiram os cobiçosos, das entranhas da terra e do centro do mar, a pedraria e metais preciosos, que a natureza produziu em tosco e, aperfeiçoando tudo, lhes dão outro valor. (...) Não perde a arte seu ser por fazer mal (...) e tal é a arte de furtar (...) que é ciência verdadeira, porque tem princípios certos e demonstrações verdadeiras para conseguir seus efeitos. (...) E se os ladrões não tiverem arte busquem outro ofício por mais que a este os leve e ajude a natureza."
Anónimo (do séc XVII), Arte de Furtar


Não tenho espaço para os exempos possíveis, mas esta notícia lembrou-me muitas outras situações em que este país parece uma coisa desfocada, quase sem existência, ou reconhecendo a sua incapacidade nas opções que toma, como é o caso daquela que leva a Badajoz as mães portuguesas para terem filhos no outro lado da fronteira.


Sunday, May 21, 2006

O todo em partes

Escher


Sofrer é uma tragédia.
Não sofrer também é porque a palha seca nos prados desmazela a paisagem.
Até os gatos sofrem quando estão especados diante de uma gaiola de hamsters e não lhes podem chegar.
Se os gatos não sofressem assemelhavam-se a um campo de ervas agrestes e eu, que não sou gata, parecer-me-ia com uma casca de laranja engelhada.
No viço da minha loucura e enquanto Stravinski sagra a sua Primavera eu componho a minha, mesmo sobre o restolho, sem tragédias mas com iguais dissonâncias.

Thursday, May 18, 2006

A parte e o todo


Escher
Todos os dias sinto que o tempo se subtrai a um todo antigo e no entanto tudo parece ter acontecido ontem, tendo sido há décadas. Décadas são intervalos de duração prolongada, quando ainda se está no lado de trás do fio esticado. Para a esquerda a.C., para a direita d.C., linha infinita, sem sinais de começo a não ser o toque do giz na pedra. O fim é o resultado da subtracção, embora se acredite sempre no prolongamento das horas sobre os dias e sobre os meses e sobre os anos.

Todos os dias a materialidade das operações numéricas me surge como afronta e no entanto os ponteiros do relógio prosseguem o seu curso trazendo invariavelmente a noite antes das manhãs. Noites são desperdício, são horas subtraídas à parte do fio que ficou no lado da frente.

Todos os dias me parecem começos de fios rasgados ou mãos que ensaiam nós para remendar o avesso de um todo antigo dividido em décadas. Décadas são ciclos de curta duração se nos colocamos em observatório piramidal abarcando superfícies alagadas de tempo.

Todos os dias relativizo a minha existência em função de um todo. Mas não esqueço a minha dimensão em nenhum dos dias.


Sunday, May 14, 2006

Abrir o espaço

Disse então que sim, que tinha o direito à ousadia.
E foi nesse exacto momento que alisou os gemidos; meteu-os no bolso de um casaco velho e guardou-o para quando chegassem Outonos a pedir lágrimas.
Ouviu o eco das palavras a dizer que nunca se fecham portas e pensou que sim, que nunca se eliminam memórias porque elas coabitam entre si e o apagamento não sabe de escolhas.
Imaginou que um café tomado à beira-rio podia ajudar os olhos a ir com as águas, a foz ali ao lado, abertura de espaço, para começar o dia. E foi.
Na outra margem crescia o casario; gente, muita gente, pensava, gente que adia decisões e se enrola no passar das horas.
Sabia de angústias, de noites mal dormidas, de amigos calados à espera das palavras para decidirem das respostas, ou antes, das propostas. Também sabia de marés vazias e das ondas a dizerem depois “que não, que não, que não tens culpa”. Contemplação de céus para matar o tempo de espera.
Depois foi tempo de dar as mãos de novo. Não é que as soltasse de si; era apenas a vida a crescer de dentro para fora. E a licença expressa para ser feliz naquele instante.

Saturday, May 13, 2006

Pintar as palavras


Há um ano que ela pinta as palavras dos poetas com a mesma energia e a mesma paixão que Turner punha nas suas aguarelas.

Parabéns, Addiragram.

Wednesday, May 10, 2006

Rimas pobres


Na prática eu apenas tardo diante das letras impressas
Apenas ou ainda, o difícil é saber
E não é por desamor ou por inércia
É talvez porque me guia a proporção das coisas.
E a inquietação antiga do querer e do não querer.

Folheio as palavras e verto-as depois. E bebo-as;
Sirvo-me delas para agitar a seiva nos meus dedos
E ao senti-las percorrer todos os lados do meu corpo
Detenho-me na sede satisfeita
E deixo sair das mãos desenhos e segredos

Seguindo a direcção das minhas mãos abertas
Componho, em letras fáceis, os degraus do meu prazer.
E em dias cheios de planos por cumprir
É este o único amor a que me rendo.
A única cedência que acabo por fazer.

Monday, May 08, 2006

À procura de uma história

- Não escreva nenhuma dessas histórias!
Incrédula, olhei para ela e depois para o meu caderno. Tinha medo de estar a sucumbir à minha própria fantasia e não ousei levantar os olhos durante uns minutos. Olhei de novo para o canto da sala: sentada, muito direita, de mãos serenamente pousadas sobre a mesa, uma cara enrugada abria os olhos na minha direcção. E repetiu:
- Já lhe disse, não escreva nenhuma dessas histórias!
Não voltei a olhar para os papéis. Fixei o olhar na figura pequenina e creio ter visto o necessário. Esqueci todas as ideias, todos os começos, todas as fantasias que me tinham enredado as quadrículas do caderno, procura inútil de uma invenção, à beira de uma realidade completa. O seu rosto era a verdadeira história, a história que se contava como um tempo que tinha acontecido sem se estar à espera. Olhando-a era como se visse, subitamente, a solução. Assemelhava-se à imobilidade de uma rocha, mas era também flor ou estrela. Dei-me conta que nela estava tudo em ordem, até mesmo a geografia das rugas onde o indizível se lia sem rumor nem fragmentos. Representava tudo o que estava excluído das palavras, todas as variantes e alternativas, todos os acontecimentos contidos no espaço e no tempo. Estava ali o conteúdo, a trama, a estrutura; tudo escrito nos olhos.

Sunday, May 07, 2006

Thursday, May 04, 2006

O amor é uma tarefa árdua e indecifrável que vagueia ao sabor dos dias

O texto que a seguir transcrevo foi-me deixado aqui, a propósito do que escrevi sobre a deficiência. Mas a autora apagou-o.
Eu gostei dele e pedi-lhe autorização para o editar porque vale a pena.
A Fatyly também sabe do que falo.

E é exactamente à minha amiga damelum que lanço o desafio de continuar a divulgação de instituições de solidaridade, que o Rui me passou .

E depois...
...é que terá de escrever.






Lembro-me das perguntas repetitivas e controladoras, das regras impostas e nunca discutidas, dos gritos e das exigências e de como eu não compreendia. Lembro-me das fugas e dos devaneios e das culpas murmuradas entre dentes, quando achamos que somos donos da verdade, e de pensar que a vida não era justa e que todas as famílias cabiam no modelo que eu imaginara. Lembro-me da sensação dos papéis trocados, dos pedidos de conselhos, de como eram indefinidas e desajustadas as funções de cada um e sentia-me crescer demasiado para o meu tempo. Depois recordo o dia da troca definitiva de papéis, dos olhos a implorarem colo, dos pedidos desajustados de ajuda e da fuga para o outro lado do nada. E não a vi, não a encontrei mais. Nem a presença controladora e impositiva que me marcava os dias nem o discurso, por vezes desconexo, mas revelador de um amor imenso. Nada estava lá, fugira para uma outra margem, muito fora do meu alcance.

Chama-se L. e é a minha mãe. Hoje está de volta, provando-me que o amor é uma tarefa árdua e indecifrável que vagueia ao sabor dos dias.


texto de damelum.

Wednesday, May 03, 2006

Os Maios da Liberdade


Já têm mais de dois séculos os Maios da Liberdade, festas comemorativas da República e da soberania popular francesa no período da Revolução.
Comemorava-se o que calhava: as vitórias, a juventude, a velhice, a agricultura, entre muitas outras coisas. Bastava que o povo se juntasse em massa, espontaneamente, para que elas ocorressem, sem preparação prévia nem sujeição a qualquer lei ou instituição. Cantos, danças, banquetes facultavam entre as gentes revolucionárias francesas o contágio afectivo que tornava a sociedade mais harmoniosa e os homens mais iguais.
Plantavam-se as árvores da liberdade, tradição que radica, certamente, nas festividades pagãs da celebração do equinócio da Primavera. Era como se a multidão, reunida, propagasse a ideia de unanimidade de que a Revolução era portadora.

…depois vieram os poetas e cantaram o Maio.


... e nós aqui, sem saber o que esperar dos Maios que estão para vir.

Tuesday, May 02, 2006

Como lidar com isto?

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Arrastava o corpo pelas paredes e uivava em dias de contrariedade. Mas isso era quando era jovem. Contam que em tempos de infância dominava os irmãos mais pequenos caindo sobre eles com os dentes.
Do que me lembro é das brincadeiras e de uma memória fabulosa, apenas entendida por quem convivia de perto com ela, porque os grunhidos eram difíceis de ouvir. E ria, estridente, de boca escancarada, deixando à mostra as gengivas descarnadas.
Pedia água, sempre e sempre, como se o corpo fosse uma esponja seca; depois a água escorria do púcaro de alumínio pelos cantos da boca e ela pedia mais, não fosse o mundo acabar sem estar saciada.
Tinha um caixote com bonecas sujas, e beijava-as, ao mesmo tempo que entoava um embalar medonho. Eu era menina mas não podia chegar-me perto. O espaço era sagrado.
Por pouco ficava-me de herança, porque a longevidade cumpriu ali uma promessa desumana. Chamava-se Isilda e era minha tia.

Não creio que lhe tenha faltado amor, mas se fosse hoje poderia ter desenvolvido algumas das suas frágeis capacidades numa CERCI.
E foi assim que respondi ao desafio do Rui, mencionando uma instituição de solidariedade cuja acção me toca particularmente.