Saturday, April 29, 2006

Histórias 3.

Contaram-lhe que depois se enrodilhou na noite como um morcego e contornou a estátua, tomando a direcção oposta. Para o lado do caminho possível, disse ele, mas ela sabia do desejo de mudança que lhe atravessava a vida. Por isso não acreditou nas interpretações que eram muitas, múltiplas, resumindo-se tudo a uma acusação de malquerença que tinha de declinar ou ficaria refém desse sentimento de perda. Nada fácil, contudo, essa tarefa.
Contaram-lhe também que na direcção oposta residiam as coisas que sucedem por acaso, mas ela acreditava na solidez das construções e conhecia-lhe a capacidade de erguer das ruínas outras fachadas, mas com desenho prévio. Pelo menos era nisso que pensava enquanto preparava o tear para o cumprimento da tarefa. Precisava, pois de robustez, não fosse a peça afrouxar nos terminais e romper-se por falta de estrutura.
Ainda lhe trouxeram novidades, dia após dia, em tudo semelhantes ao despeito que teceu em pontos deliberadamente mal rematados.
Alimentou-se, pois, de cóleras até esgotar os argumentos e mesmo assim ainda lhe foi difícil aceitar que as mãos só adquirem a perfeição quando se soltam.

Thursday, April 27, 2006

Podíamos jogar à cabra-cega

Santa-Rita Pintor
Onde estão os meus olhos agora que me despedaçaram as formas?
Como faço para recuperar os sentidos se o que sinto são tímpanos opacos e a visão engole as palavras sem as diferenciar?
Terá sido o efeito maléfico dos sonhos ao acordar ou o incómodo de viver para além do passar das horas?

Wednesday, April 26, 2006

Ponto pé de flor

As mães bordam rosáceas
E compõem pés de flores nos linhos
Que arrecadam junto à esperança.

São formigas laboriosas,
Pontos de apoio ou degraus suspensos
Ou a mão que vai lançando os alicerces
Em betão marcado pelas ausências.

Também costumam desenhar janelas nas madrugadas

Enquanto remendam alguns pensamentos
Aguardando o alívio da manhã.
Depois acordam cansadas e cozinham pratos exigentes
Nos intervalos das rotinas mais primárias.

E sabem o canto das cigarras.

As mães passam pelo espaço às escondidas

Para que lhes sintam apenas a sombra e o resultado.


Tuesday, April 25, 2006

Sunday, April 23, 2006

lengalenga


Mal dos poetas perdidos no palavrear libertador próximo da dor espumosa; mal dos que amam sem que o tempo os deixe permanecer aconchegados no querer eterno; mal de todos os seres pensantes do universo desgastados pela sucessão das marés que se impõe ao cansaço dos olhos; mal dos que procuram a razão das coisas sem conseguir ir além da definição de invernias repletas da mais criativa escuridão; mal dos cérebros que concebem a genialidade de uma lucidez estrangeira, cruzada a preto e branco; mal da gentileza da mão prodígio feita de traições e fugas, deliberadas ambas pelo costume de avançar até ao fundo das coisas; mal dos propósitos estratégicos para afastar a irmandade com aquilo que é o mundo e é o eu de cada um disperso através da direcção do olhar; mal da logística que desceu em nós por força do nascimento, obrigada desde então a albergar a alma num corpo que lhe é estranho; mal das caligrafias sublimes que evitam o borrão no papel; mal dos pórticos decorados sobre cantos misteriosos; mal das máscaras; mal dos ouvidos semi-cerrados; mal dos espelhos; mal do mal

Saturday, April 22, 2006

Aproximação a Brecht? Hummm...só se for pelos elos de uma corrente...


A Wind deixou-me o desafio mas a origem veio daqui. Para quê? Para seguir as palavras de um poema de Brecht ( a bold) e acrescentar outras que rimassem à minha vontade. Segui a métrica e rimei desta forma...


Alegrias, são benvindas em todos os dias
Dores, se pudesse vestia-lhes cores
Casos, se te desse a escolher que farias
Conselhos, são inúteis em casos de amores

Meninas, as dos olhos, às vezes são luz

Mulheres, todas juntas complicam a vida
Orgasmos, se é para hoje não há que hesitar
Ódios, se os cultivas é guerra perdida
Domicílios, posso ir, se não for p’ra ficar

Adeuses, já me vi a acenar sem coragem
Artes, dou-lhes forma alinhando as palavras
Professores, sei de perto o que são e o que fazem
Prazeres, vias férteis em plena viagem

Projectos
, construções à medida dos sonhos

Inimigos, já esgotei as raivas, já não vejo
Amigos, o prazer da conversa e o gosto
Cor, é com ela que pinto o desejo
Meses, numas férias na praia, em Agosto

Elementos, natureza em jeito de obra-prima
Divindades, já caídas dos céus, por descrença
Vida, raio de sol que desponta e anima
Morte, a dos sonhos traz sempre falência.


Ivamarle, Bastet, Fausta, querem tentar?

Wednesday, April 19, 2006

"Sentir, sinta quem lê"

Toda a narrativa é um artifício e “sem a existência de um leitor os textos escritos não passam de marcas pretas em páginas brancas”. (1)

E o que faz quem escreve?
Deita mão às histórias alheias e torna-as suas, transforma-as, acrescenta-as e muda-lhes o final. Ou não.
Apropria-se do tempo e alisa-o; depois recorta-o e brinca com ele.

Por isso todo o texto exige um leitor, cujas reacções tomam a forma de sistema de palavras, depois agrupadas associativamente no seu espírito.
É a interpretação a afirmar-se sobre a criação.
Sendo assim, quem tem verdadeira importância neste jogo é quem está do lado de lá.


(1) Linda Hutcheon, Uma teoria da Paródia, Lisboa, Edições 70, 1989, p. 35

Tuesday, April 18, 2006

À volta das dores

Podia até dizer-te que tenho pena e que me doem as tuas dores. Mas também tenho em mil pontos de vista dispersa a verdade das coisas, sem saber em certos dias se a verdade é o que vejo ou se não é isso mais do que a criação de um querer que não diviso dentro da consciência, por omisso ou camuflado.

Podia até dizer-te que penso em ti. E penso. Mas se o faço é por piedade, sendo já este o sentimento inócuo de te ver à distância, sentado na cadeira onde buscas o conforto impossível embora continues a fazer o planeamento da vida que para ti nunca parou, nem agora que estás parado.

Podia até dizer-te que sei o que sentes. Mas não sei disso por solidariedade ou por analogia; sei-o porque as senti ferradas, essas dores que silenciei a maior parte das vezes ou que gemi calada enquanto as lágrimas corriam para dentro e ilusoriamente as suavizavam.

E assim andamos à volta das dores. Tu porque as sentes. E eu sentida.

Monday, April 17, 2006

Pela dignidade da Língua Portuguesa


É um assunto muito sério.
Quem está ligado ao ensino tem plena consciência de estar a contribuir para a formação de cidadãos que não sabem apreciar a beleza de um texto pela falta de contacto com a literatura.
Se ao menos eles saíssem em condições de preencher um formulário ou redigir um requerimento, podia dizer-se que tinha tido efeito a reforma aplicada de há seis anos para cá. Porém, eles têm de contar palavras em pleno exame, porque lhes é pedido que redijam um texto argumentativo a metro, entre outras coisas.
De futuro parece que vão ter de usar também cruzinhas, porque as perguntas de escolha múltipla vão fazer parte dos exames de Português.
E o saber escrever, o saber usar a palavra ou apreciá-la no seu valor literário?
Precisamos apenas de cidadãos que saibam usar o teclado para redigir abreviaturas? Ou para escrever em blogues, ainda que com erros ortográficos?
Há uma petição aqui, originária de uma professora de português que se tem recusado a cumprir os novos programas. Com um pouco de paciência e alguma vontade lê-se e toma-se posição. A bem do uso da língua portuguesa.

Sunday, April 16, 2006

Em Abril de 1506




“A multidão, que naturalmente é dessisuda e assomada, eivada agora com vislumbres de religião, entrou a bramar de ouvir um cristão denegar crédito a um milagre. Tratam-no de aleivoso e malvado judeu, traidor à fé, cruel e desorado inimigo, digníssimo de todos os tormentos e da morte. Foram crescendo sobre ele os vitupérios de toda a parte; e tanto se escandece a cólera naquela mó de povo, que arremetem com o homem, travam-lhe dos cabelos, levam-no de rastos, e atormentando-o até ao rossio, ali crudelissimamente morto o despadaçam; erguem súbito uma fogueira, onde arremessam os troços do cadáver. Acorreu a tal motim toda a gentalha, à qual um frade fez uma pregação acomodada a despertar vinganças da religião (…) atravessados de ruindade e desatino, se arremessam e investir ferina e brutalmente com os míseros judeus: degolam, apunhalam, e ainda palpitantes e com vida os arrojam nas labaredas. (…) Quebrariam corações de bravias gentes os prantos lamentosos das mulheres, as magoadíssimas súplicas dos homens e os maviosíssimos clamores tão gerais. Mas tão despidos andavam de humano os enfrascados naquele morticínio, que sem perdoar nem a idade nem a sexo, com antolhos para tais resguardos, algozavam por maneira que, naquele dia, foram mortos e queimados além de 500 pessoas dos hebreus. (…) E em razão de tôda a família judaica se ter, de temerosos, escondido em casa, lhes arrombavam portas e entravam dentro a degolar, como carniceiros, homens e mulheres e as donzelas mesmas, esmigalhando contra as paredes as criancinhas, tirando pelos pés uns mortos, outros expirando, para os lançarem nas fogueiras (…)”

Jerónimo Osório, Da Vida e Feitos d’ El-rei D. Manuel, Porto, Livraria Civilização, 1944, vol. I, pp. 194,195

Friday, April 14, 2006

Brrrr..... que frio!


- Calatrava?
- Sim, o espanhol que desenhou a Gare do Oriente.
- Espanhol? Mas… nós não temos?
- Bem… temos, mas um dos nossos faria aquilo mais ... sei lá!, e o que se queria era um open space.
- Mas… ali? E não é frio?
- Dizem que sim. Mas é bonito!

Thursday, April 13, 2006

Sobre a conservação

Conímbriga

Era uma vez um grupo de pessoas que tiveram necessidade de construír casas para habitar. Já lá vão muitos anos. Tantos, que as casitas acabaram por ficar em ruínas e depois as ruínas arruinaram-se a tal ponto que hoje quando lá vamos encontramos tudo espalhado pelo chão e só com muita imaginação conseguimos perceber que eram romanos, que tinham tanques de água a que chamavam termas, que forravam o chão com azulejos, etc. Das paredes não se sabe muita coisa, porque já não existem. Da altura das colunas, só por analogia com outras paragens, pensando-se que quem faz um cesto faz um cento e que aquilo estava tabelado para que a arquitectura não fugisse do padrão mais económico. Longe da metrópole tinha de se poupar algum e o que interessava era seguir as normas imperiais mas à distância. Isto dizemos nós, que nem sabemos o que diziam e o que pensavam, ou a que hora do dia acordavam e com que disposição ali faziam a guerra, ou o amor...
Porém as pedras estão dispersas num local em que se abrasa no Verão. Vá lá saber-se como é que os romanos resistiam ao sol. Os visitantes ainda vá que não vá, só lá vão uma vez na vida e chega, mas quem lá morava devia ter de se proteger e refrescar.
É então que nos surge um criativo nacional ou um conjunto deles, porque o trabalho em equipa sempre pode chamar-se projecto, engendrando maneira de embelezar a zona para maior atracção turística ou porque assim imaginou a coisa e mandou colocar protecção solar ao estilo Calatrava mas mais de trazer por casa, que aquilo é campo e p’ra quem é bacalhau basta; mandou também refrescar o ambiente com repuxos, não se sabendo muito bem se os autarcas se inspiraram nas ruínas ou as ruínas nas rotundas e muito menos se os romanos já tinham rotundas, podendo bem ser que sim. A verdade é que repuxos e plantas decoram o cenário e qualquer criancinha pode perguntar à mãe, sem que ninguém lhe possa levar a mal, se era ali naquela água que os romanos se lavavam.
Ora não seria melhor tapar tudo e deixar umas pedrinhas para ficarem expostas numa das montras de um shoping que ali seria uma mais valia económica com um nível de visitas por hora de longe superior a qualquer amontoado de pedras?

Wednesday, April 12, 2006

Abrir o verbo


Às vezes é o tédio que se instala de tanto os afazeres deixarem de ser gratos; como se a repetição dos gestos agastasse e o cansaço do fim do dia nascesse com o sol.

Outras vezes é a metamorfose que tarda. Assisto, espectadora, à permanência da forma e não me apetece contrariar o desagrado. Custa amainar a vontade ou fazer dela a vela de um navio torcendo-se contra o vento.

Também acontece que o verbo se fecha quando devia arredondar-se sobre os vértices das pedras, fluindo nem que fosse por teimosia.

Ponham vinho na mesa. Já oiço o tinir dos copos; acompanhem-me mortais, que me fartei de solidão.

Aguardemos o efeito da mudança e o reforço dos vidros ao cair da tarde. Manhã serôdia mas ainda a tempo de captar os ângulos das marés donde emergem relvados em pleno viço.

Tuesday, April 11, 2006

Espanto?

Magritte

O passado é sempre o mesmo passado e as pedras estão sempre nos mesmos sítios. Mãos engenhosas podem mudá-las ou transformá-las; até os olhos podem escolher o ângulo de observação. Porém, tudo permanece.

Sunday, April 09, 2006

Mnemotecnias

Dali


São areias da praia onde repousam poças de água muito transparente com relva a despontar do fundo ou escarpas a pique com abismos à vista.
E eu percorrendo os areais ou sentada na rugosidade da rocha, mas sempre sob a ameaça da queda lenta e eterna.
Também podem ser escadas que me transportam para os lugares cimeiros donde caio invariavelmente como se o filme passasse devagar e nunca acabasse; ou caio para um lugar vertical muito elevado que dificilmente me acolhe, tal é a estreiteza, estando de novo a queda à vista. Devagar.
Outras vezes são passagens apertadas onde poderia caber o corpo de uma ave, nunca o meu; contudo eu teimo e fico aprisionada em sufoco porque algum perigo me apressa na passagem e eu tropeço na roupa ou corro de joelhos e nunca chego ao meu destino.
Ou barcas perto das margens mas sem leme. Ou gritos abafados numa voz que não existe. Mas sempre com perseguição ou outro perigo que não identifico por falta de tempo.
Aflijo-me também perante folhas e folhas de palavras que não decifro. Mas estão lá à minha espera.
Convoco pois os relógios deformados e os violinos dobrados sobre as areias dos desertos, os cavalos de dorso suspenso ou as gavetas dos corpos putrefactos, a beleza comestível e as ruínas dos poços iniciáticos. Eterno retorno este, que os mecanismos do invisível operam no teatro da memória.
Ah, mas recuso os deuses pregados nas paredes em crucifixos dourados. Não me sujeito aos modelos, embora finja.

Saturday, April 08, 2006

Não há ecos no vazio

Botticelli


Deves ter ouvido os teus murmúrios soprados por Zéfiro e embora digas que não há ecos no vazio sabes que são os silêncios que propagam as vozes. A verdade é que a concha não estava fechada e a tua casa não é lá dentro. Por isso é que as palavras acordaram, quando a deusa te mostrou a Primavera nas grinaldas de mirtilos e agitou no manto o cheiro a flor de laranjeira.
Acorda Vénus. Deixa esse ar de quem está prisioneira em pensamentos e aproxima o olhar. A paisagem é plana, modesta, fresca em verdes e azuis suavizados pelos \/\/\/ das ondas e a Hora tem os pés pousados em espuma. Mas repara que o filho do deus do vento carrega uma ninfa com a harmonia de quem flutua porque só o amor tem asas.

Thursday, April 06, 2006

O cheiro da Igreja


Podemos ver nesta história que a minha avó me contou e à qual eu acrescentei as cores, os sons e os cheiros, um qualquer filme português ao estilo neo-realista (porque o António Silva já não é vivo; se o fosse dar-lhe-ia o tom desconcertante da comédia prosaica).

Mas é com este acto de cinema (ou argumento?) que apresento a minha segunda participação para o concurso promovido aqui.




Quando as alpercatas iam chinelando sobre a areia, abrandava o passo, mas se as carrasqueiras rareavam o sol castigava e andava mais depressa. Debaixo do chapéu de palha ainda tinha a protecção do lenço, atado em duas pontas debaixo do queixo, misturando-se o cheiro fresco das estevas com o da transpiração e colando-se as meias à magreza das pernas.
Seguia apressada, as mãos a darem o impulso da marcha, de trás para a frente, da frente para trás. Sentia a pieira no peito e o respirar era ofegante mas já avistava as primeiras casas da vila. Começavam a ver-se os chiqueiros dos porcos, à espera da faca que separasse o toucinho para a salgadeira, que o mais dos tempos a fome roía as entranhas. Depois os palheiros, casinhas de adobe rasteiras ao chão, com telha muito gasta, as empenas a esboroarem-se gastas da esturração do estio e do salitre que soprava do suão, nos temporais invernosos. Dos poiais caíam cachos de malvas e alegrias da casa, dispostas em restos de vasos, ou metidas dentro de cestas de palma entrançada. À roda das casas corriam os moços pequenos, zurzindo latas, caras sujas e pés descalços, os paninhos das camisas a saírem dos suspensórios com que seguravam o cotim gasto das calças, transformadas pelas mãos destras das mães, que vinham para a rua ao fim das tardes – era a hora da lazeira, diziam –, sentadas nas cadeiras de vime, com a ceirinha das linhas e das agulhas, onde havia sempre um ovo de madeira para remendar as meias.
Destacavam-se os caboucos do casario, de encontro aos cerros que fechavam a vila, vendo-se no chão as fendas da terra seca. E ouvia-se o canto das cigarras. Os cães vinham ladrando ao caminho enquanto Justina se afogueava e limpava o suor com as pontas do lenço.
- Ó ti Juliana! Chegue-me daí um cucharrinho de água!
A mãe da comadre levantou-se largando a empreita e lançou a corda à cisterna, ouvindo-se o eco do balde batendo na água fresca. Justina levou a cortiça à boca e refrescou depois as mãos e as maçãs do rosto.
- Vou à Igreja, ti Juliana.
- Mode quê, filha? Hoje nã é dia de missa.
Não ia pela missa, ti Juliana, mas pelas velas. Não, não era promessa; os moços estavam bem, lá andavam guardando as ovelhas e Constantino ficara deitado. Não era homem de muita azáfama, desde que tivera de salvar uma ovelha das águas da ribeira e desmanchara as costas. Para isso lá estavam os rapazes que, na escola, não tinham futuro. O mais velho não podia, que os rebanhos precisavam de mão firme. No princípio ainda foi, mas fugia da professora e subia às figueiras, escondendo-se dos puxões de orelhas. Era mau de aprender. Os outros eram tenrinhos e a escola era longe.
Justina entrou na igreja e soube-lhe bem o contacto com a frescura. Sentou-se, aliviando o lenço, abanou-se com a palhinha do chapéu e fez as contas, mais uma vez: o António estava a mamar há um ano. Enquanto amamentava, o corpo ia engrossando, nunca sabia se era o leite que lhe inchava o ventre ou se já engenhava o próximo filho. Respirou fundo. Era ali que costumava tirar as dúvidas.
- Comadre ‘Estina!
Era a Maria da Venda, de lencinho preto em jeito de bico na cara enrugada; fazia a limpeza da Igreja e tinha ajudado a lançar água benta sobre o mais velho, quando ainda tinha o homem com ela.
-‘Tá uma calma lá fora!
- E eu nã sê? Vim por aí à pressa…
Fora a companheira dos bailes, em dias de festa. Lavavam a roupa na ribeira, de manhã, as pernas metidas na água durante horas, enquanto a espuma corria pelas pedras; depois lançavam os trapos coloridos às cordas, estendidas entre duas pernadas de alfarrobeira. À noite vestiam cores garridas e iam dançar. Constantino fazia tinir o ferrinho no triângulo, suspenso na outra mão, enquanto lhe deitava sorrisos pelos olhos, ao som do baile mandado: “Tudo certo e devagar; palminhas, mãos ao ar!”. E elas batiam as palmas acertando o passo corrido com o deles. Constantino puxava-a pela cintura e fazia-a rodopiar, enlouquecendo-a com a música dos beijos prometidos: “Palminhas acabou e ninguém se enganou!”
Justina pegou numa vela e acendeu-a, virando-a sobre o coto de uma outra. O lenço deslizara-lhe para os ombros e o carrapito empinava-se na nuca, basto e muito negro.
Das outras vezes, quando vinha na dúvida, mal entrava na Igreja sentia-se agoniada, ou pelo cheiro das velas ou pelo incenso queimado. Qualquer coisa, lá dentro, lhe despertava os sentidos.
Sentou-se de novo e esperou. Depois franziu a cara; aquele enjoo voltava; a água crescia-lhe dentro da boca e o bucho a revirar-se, a revirar-se. Fincou as mãos na barriga e depois levou-as aos olhos, escondendo o rosto.
- Que tens, mulher? Valha-me Deus, estás toda branca!
- Vem aí mais um, Maria, valha-me Deus a mim.

Tons difusos e chicotes


I
Em dias assim
Seco as lágrimas nos cantos da boca
E risco a face de arco-íris difusos
À espera de encontrar o lugar dos tesouros;




II
Mas trago para dentro o olhar
E arredondo a pequenez das vistas.

III

Pego nos ramos secos alojados no centro das mágoas
E desenho flores para espantar as raivas;

IV
Não ganho o dia
Mas gasto o tempo;
Amaino o bater dos chicotes na memória
E vou adormecendo a violência das palavras.

Tuesday, April 04, 2006

Toda a infância cabe numa caixa enferrujada


Inspirei-me numa cena ou numa ideia colhida no filme
"Le fabuleux destin d'Amélie Poulain".
Sei que é um filme que dá para mil e uma abordagens mas resolvi pegar na
caixinha das memórias...
E é com este acto de cinema que vou concorrer ao Escritor Famoso que está a ser promovido no blog Divas e Contrabaixos.


Nesse dia tinha sonhado com o pai. Dir-se-ia que andava enleada nos caminhos da reconciliação com as memórias. Ela ou a parte de si que se escondia da racionalidade.
Foi depois do sonho que sentiu desejo de voltar à casa antiga. Vestiu-se de roupas novas e recuou no tempo. Paradoxo certeiro mas eficaz nas intenções porque foi na estação do comboio que o passado começou, enquanto o cheiro das travessas da linha se alojava no sentir antigo, quase até ao silvo da locomotiva e à “pouca-terra” anunciada ao longe. A viagem deu-lhe tempo para desejar ter pressa e por isso empurrou com força a porta, depois de ter estado presa ao brilho que o sol reflectia nos vidros. Ofuscada, talvez, ou à procura da paz que lhe guiasse os passos, frente à entrada.
Estava escuro e cheirava a mofo. Lembrava-se agora que tinha prometido uma limpeza aos móveis e às paredes, mas já não sabia há quanto tempo. O que sabia era de um cheiro próprio dali, um cheiro que vinha do lado de dentro. Todas as casas têm um lado de dentro mas ela sempre lhe tinha virado as costas. E foi nessa posição que fotografou as nuvens com a imaginação, vezes sem conta, prometendo a si própria que havia de seguir com elas. Cumpriu a promessa, num dia de céu carregado, antes de desabar o temporal. Ou foi por isso que ele desabou.
Agora, porém, virada para a entrada, conseguia ver o caminho a vir na sua direcção. Era curiosa a percepção de um simples exercício a inverter a perspectiva das coisas por explicar.
Entrou no quarto e percorreu devagarinho a familiaridade do espaço, enchendo as narinas de infância. Abriu depois as portadas, devagar, e olhou para o sítio onde sabia estar pousada a caixinha. Sentou-se na cama e pô-la no colo. E assim ficou.
Antecipou a primeira recordação. Sabia que a fotografia lhe iria mostrar o vestido branco de saia muito rodada, saltitante dentro daquele momento que o pai captou num dia de festa.
“Ela gosta de andar aos saltinhos pela casa e de furar os bolos quando saem do forno. E não se queima. Mas não gosta de ajudar a mãe nem de arrumar os brinquedos depois de estar uma tarde inteira a imaginar personagens”. Era assim que o pai dizia às visitas.
Contudo ela sabia que gostava de muito mais coisas.
Gostava de soprar serpentinas para as ver soltarem-se, livres; de encostar o dedo com cola à madeira ou às capas dos livros para sentir a proximidade das coisas; de ver a pedra a fazer ricochete nas águas do charco e sorrir da irreverência de um objecto pesado a soltar-se em voo. De colocar no colo uma pilha de livros para começar a saborear o primeiro, sobre o cheiro das folhas dos outros. E de deixar as suas personagens nos lugares das histórias, não fosse perder-se a vida que lhes criara.
Abriu a caixa. Olhou os objectos um por um e levou o búzio ao ouvido. “Pai, deita-te nas ondas e pousa-me nas tuas costas. Faz-me sentir que estou a nadar, que as águas são transparentes e eu hei-de dar-te amor pela vida fora”.
Depois o boneco de barro que tinha enfeitado os presépios, ano após ano. Tantas vezes brincara com ele deitando-o nas palhinhas para o proteger do mal. E tanta era a solidão herdada que tinha de olhar as caras dos outros no escuro do cinema; e os abraços dos outros dentro dos carros, ao sol-posto; ou andar pelas ruas cheias de gente, ao domingo, para lhes ouvir as vozes. E sentia-se quase como a figura feminina de Renoir – estava no centro mas a ver de fora. Por isso via como o passar do tempo a tinha feito recusar o enleio do todo e como as horas passadas à mesa eram sempre as mais penosas por estarem juntos e em família. “Jesus faz com que eles se dêem bem e não discutam”.
Pegou na conta de vidro verde e sentiu, através dela, o pêlo branco do gatinho de corda trazido de um país frio. E na caixinha de baton, a cheirar a maquilhagem velha, junto dos brincos de pendentes pretos com lantejoulas a lembrar a tia. Tomara-lhe a entoação e dizia como ela, enquanto fazia falar as personagens de plástico sem cabelo “Nunca existe a felicidade completa”.
Pegou também no lenço roxo que a mãe usava e cheirou-o de novo. E sentiu nele a alegria dos fins de tarde, quando a mãe inventava esconderijos pela casa à espera que ela a descobrisse; riam-se as duas, riam-se tanto… até que a mãe dizia “O que será que está para acontecer?” Depois o pai chegava e não havia mais brincadeira.
Foi nessa altura que deu consigo a limpar as lágrimas ao lenço roxo dos dias frios.

Depois fechou tudo, caixa, janelas, memórias e por fim a porta da entrada. E foi mais uma vez de costas para a casa que partiu, ao ritmo das nuvens.

Monday, April 03, 2006

Histórias 2.

Ela dizia que o estímulo pode encontrar-se no desencanto e insistia em encantar-se com o abraço morno e o cheiro a quase tu. Depois acordava e entrava nas manhãs sem chegar a encontrar-se nelas; nem nas tardes invariavelmente enevoadas de fumo de cigarro e de incerteza.
Porém era fluente ao longo dos dias e em quase todas as situações, gostando de se colocar no centro, num quase palco de representações genuínas.
Chamava, pois, toda a gente para junto de si e o eco das palavras e dos risos amansava-lhe os silêncios. Tudo menos as horas vazias, pensava.
Andava por ali o ardil da triangulação; por isso ia inventando satisfações no pragmatismo que lhe era oferecido em bandeja dourada, fingindo aceitação. Melhor uma construção sólida, nem que seja pelo lado de fora, do que o nada.
Havia dias em que se convencia de não ser preciso usar as palavras, mas doía-lhe prescindir do verdadeiro encanto, embora a palavra desassossego lhe estivesse colada às mãos tecedeiras. Era por isso, pelo hábito de tecer sentidos cruzados em desenhos complexos, que a vida simples lhe atormentava os dias.
Não há tréguas para quem começa muito cedo a querer descortinar o mundo que está para além do fim da rua.

Sunday, April 02, 2006

A Gaivota, de Tchekov





Tudo metido entre as asas ensanguentadas de uma gaivota morta: o sentido da existência, a dificuldade das relações entre as pessoas e entre o dinheiro e as pessoas, o isolamento rural que finge ser bucólico mas enlouquece, o talento e a falta dele, o conflito entre o novo e o velho que é um conflito de forma e de conteúdo, o egoísmo, o engano, a ilusão, e expectativa, o desânimo. E o desejo de cada um e de todos que é o desejo de felicidade. Ou antes, o direito à Felicidade.

Questões escritas por Tchekov no século XIX que são ainda as questões de sempre, num texto límpido, luminoso e clarividente.

Mas talvez o escritor não tenha de anotar num caderninho as palavras ou as frases para depois lhes dar uso.
Mais uma vez e sempre… o sentido da criação.
A genialidade de Tchekov toda condensada num gesto. E a nós … o dever da reflexão.

Palavras longas e muito bem ditas pelo grupo da Cornucópia, encenado por Luís Miguel Cintra.